Caminhos de cortiça













Ainda noite escura saltou da cama partilhada com a irmã América e chegou um fósforo ao candeeiro de petróleo.
Na cozinha aqueceu um púcaro de esmalte cheio de café feito de véspera. Lavou-se com gestos rápidos como a afastar o sono que envolvía toda a casa.
Estava atrasada como todos os dias.
Enquanto vestía a bata, uniforme da fábrica, ía beberricando o café quente e a ensopar um bocado de pão escuro a acompanhar os figos de piteira. Lá para os meados de Setembro comería uvas, mais adiante laranjas roubadas das terras da Costa e finalmente azeitona, com os frios rigorosos.
Foi abanar Polónia que dormía junto com a mãe, avisando que era tarde, que se despachasse que íam chegar atrasadas.
Agarrou nos sapatos e guardou-os dentro de um saco de pano, que também transportava os restos que havíam sido do jantar e que lhe serviríam ao meio-dia.
Chamou de novo a irmã e como esta lenta se demorasse a acordar para a vida, preparou-lhe uma saca igual à dela.
Foi para o quintal atirar as cascas dos figos às galinhas.
Apareceu América em camisa de noite, espreguiçando-se e olhando o céu estrelado.
- A que horas pegas hoje?
- Hoje só entro às nove. Estamos à espera do mecânico para consertar a máquina... nem quero pensar... se aquilo se avaría de vez, Normandia! Não posso ficar sem trabalho, mulher!
- Vai tudo arranjar-se, América. Volta para a cama, não vá a mãe acordar. Mas essa Polónia não aparece?! Olha ! Eu vou indo! Diz-lhe que vou indo, senão chegamos as duas atrasadas! Até logo!
Desapareceu num passo rápido, marcado, os chinelos gastos a levantarem poeira nos calcanhares, o caminho guiado pelas estrelas faíscantes, as asas das cigarras a esfregarem num ruído contínuo, alguns grilos a acompanharem a cantoria.
-Normandia! Normandia, espera mana! Não corras, espera por mim! - sussurrava a arfar, as alpercatas como castanholas a estalarem, alternando corridinhas rápidas com passos largos.
Normandia nem olhou para trás, que já lhe conhecía os hábitos. Esticou o braço e passou-lhe o saco e depois, as duas de braço dado, marcaram o ritmo, acelerando, que até à fábrica eram 8 kms a corta-mato por azinhagas e quintas.
De um par passaram a cinco, depois mais os manos Botas, mais adiante, uam rapariga e quando chegaram à vila o grupo crescera até à dúzia. Mas na verdade, o que parecía era uma procissão, pois quase toda a gente da vila da Cova e arredores, trabalhava na Ranking&Sons, a fábrica de cortiça, ou como todos lhe chamavam simplesmente, a fábrica.
Ouviu-se um apito longo e estridente: Normandia e Polónia desataram a correr em direcção aos portões gigantescos pintados de verde, seguidas por uma multidão que se empurrava para entrar em primeiro. Era um mar de gente a chegar, a perfurar o cartão amarelo de ponto e a dirigir-se aos vários sectores que trabalhavam a casca do sobreiro.
As irmãs trocaram os chinelos pelo calçado guardado nas sacas de pano.
Normandia era da "escolha": tinha uns olhos bons, rápidos e vivos que lhe permitiam distinguir entre uma boa rolha e uma defeituosa.
Polónia nicava: era um serviço de minúcia, aparar os excessos à volta da rolha cilindrica, macia e quente ao toque.
América tinha um serviço distinto: os seus braços musculados e a sua estatura elevada fazíam dela a única mulher a laborar num sector exclusivamente masculino, operando pesadas máquinas de corte ainda na casca enrolada e rugosa. E por isso, ganhava como os homens, muito mais do que as suas duas irmãs e demais mulheres.
As três sustentavam a mãe e a casa, que o pai finara-se ainda elas garotas, num desastre de carroça atropelada por uma camioneta de carreira. Foi-se o homem da casa e o animal, que teve de ser abatido. E até Polónia ter dezasseis anos e ir para a fábrica, a mãe foi o único suporte a lavar e a engomar para fora. Aos quinze Normandia fez uma permanente no cabelo louro e apresentou-se à admissão da fábrica, muito mulher, muito madura e como ninguém confirmava nada aceitaram-na tendo como bons os seus 18 anos. No ano seguinte foi América e o corpo desenvolvido foi o seu melhor bilhete de identidade.
As irmãs com a diferença de um ano e meio entre elas acharam que estava na altura da mãe descansar.
Eram conhecidas por todo o pessoal da fábrica por causa dos nomes de países que tinham. Polónia explicava que o pai depois de ter aprendido a ler, recebera do seu professor um atlas geográfico e agradecido ao seu mestre, prometera-lhe que um dia, os seus filhos haveríam de ter os nomes das terras que ali aparecíam.
Cumprira a promessa e as filhas honravam-lhe a palavra.
Trabalhavam de segunda a sábado, numa repetição de gestos cansados, caminhadas rasgando a escuridão, o frio e as chuvadas, a canícula e a poeira.
Não se questionavam, a vida era assim.
E das três, Normandia destacava-se pelos seus olhos ora azuis ora verdes e um cabelo louro que tinha trazido, dizía-lhe a mãe, de um tio que viera gazeado pela mostarda da 1ª Grande Guerra. Mas a voz era o seu estandarte, pois cantava e trinava que até o barulho das máquinas se apagava sumido de tanta paixão.


O encarregado do sector da "escolha", galego de origem "xamaba"-lhe "Normanda, Normanda!" e ameaçava "quedar lo xonido!" mas passado algum tempo Paco Feixó embevecía-se no canto e deixava a produção seguir, calado, que a admirava.
Normandia troçava dele e piscava-lhe o olho camaleão, para logo num gesto fingido mostrar um falso medo ao pingalim que sempre aquecía a mão do galego.
O mulherio ría e ao almoço passava palavra da façanha da "Normanda".
A vida seguía sem sobressaltos, sem alterações, só as estações dos anos a mudarem.
Um dia apareceu na cantina um homem que falava baixo com os outros e entregava papéis de letras negras. Alguns operários evitavam-no, Normandia e Polónia curiosas, chegaram-se.
- Camarada! Podes aproveitar a tua boa voz e os ouvidos que te escutam para passar a palavra que nos pode libertar!
Polónia assustou-se e deu um esticão à irmã para que saíssem dali. Mas Normandia inquiriu-o de imediato donde ele a conhecía e como sabía que ela cantava bem.
- Cantar? Que cantar?! Cantar só quando for o dia da vitória! Agora é tempo de luta! Olha, toma estes panfletos e distribui entre os camaradas do teu sector! - e saíu às pressas largando-lhe os papéis entalados na mão surpresa.
O apito levou-a até ao período da tarde e aos milhares de rolhas a rebolarem até aos seus olhos apurados, os papéis amachucados no bolso da bata.
No resto do dia cantou fados, não soube bem porquê.
Paco Feixó admoestou-a uma só vez e deixou a voz voar para quem a quisesse ouvir.
Mas desde esse dia não saíu mais de perto dela.
E o homem misterioso não voltou a aparecer.
Algumas semanas depois, após ter pedido autorização para ir à casa de banho Normandia deu com os papéis esquecidos dentro do bolso do uniforme. Pela 1ª vez leu-os. E deixou-os pendurados no prego recurvado que suportava quadrados de jornal que davam serventía à limpeza do fisico.
E um par de dias após, o apito da fábrica soou antes do meio-dia e todos acorreram ao pátio pensando que ficaríam sem trabalho por causa de algum incêndio que acabaría com a Ranking&Sons.
Os encarregados de cada sector mandaram perfilar os seus operários: eram um mar de gentes sem ondas, sem movimento.
Dois homens de fato negro nunca vistos, aproximaram-se da multidão e aos berros comunicaram que "aqui ninguém faz comicios! Ninguém faz greve! Ou vai tudo para a gaiola!" e distribuíndo os panfletos de letra negra pelos encarregados fizeram-nos desfilar diante dos narizes dos homens e depois das mulheres, perguntando quem tinha entregue aquele papel.
O sol queimava a pino.
Ouviu-se um barulho e um homem caído no chão foi de imediato arrastado pelas covas dos braços pelos homens de fato, desenhando na gravilha escura, dois riscos ondulados marcados pelas biqueiras das botas, como se dois riachos agora se desusnissem do mar grande.
Normandia procurou com o olhar Polónia e América mas não conseguiu descobri-las. Só encontrou os olhos negros do galego Feixó e do pingalim nervoso, agitado atrás das costas.
Os homens de fato escuro insistiram nas perguntas e parecíam não ter pressa no tempo. Uma mulher chorou. Depois ajoelhou-se e pediu perdão. Os homens trouxeram-na para perto do desmaiado.
E como se nada mais se passasse, abriram-se os gigantescos portões verdes e entrou a guarda a cavalo.
O mar agitou-se numa vaga, barulhento: rolos de pó dos cascos dos animais entupíam a visão e a garganta já ressequida de tanto sol, corridas desenfreadas de sapatos e chinelos perdidos, bonés que voaram dos guardas montados foram espezinhados e o silvo dos chicotes a cortarem o ar só foi abafado quando se ouviu um tiro.
Paco Feixó agarrou a mão de Normandia e puxou-a para debaixo de um camião carregado de casca de sobreiro. Ela temeu: Primeiro que a vergastasse depois que fizesse a denuncia. Mas ele só a olhou e baixo quase a soletrar "Normanda, Normanda, que fostes faxer... que no te poxo acudir..."
Viram as patas do cavalo parado junto ao rodado do esconderijo improvisado e a ordem foi para saírem.
O galego assomou ao sol fechando um olho à claridade violenta. O pingalim esquecera-o junto a Normandia. Sentiu um golpe quente a arder-lhe no pescoço e de imediato o espirro de sangue a sujar a barriga do cavalo e as botas engraxadas do guarda. Levou as mãos ao golpe desferido pelo grito do chicote e num berro atirou "Coño!". Ainda sentiu mais uma e ainda uma outra dentada do chicote mas deixara de ver nitido e caíu nos joelhos.
Vieram os homens de fato negro, um deles evitando a bosta quente que o cavalo esporado não conseguira aguentar. À vez foram oferecendo impropérios e pontapés, o Feixó devolvendo enrolado humilhações em galego.
E de repente tudo parou.
Só uma voz clara, limpida, desfiando notas como flores, projectando sons que deixaram nervosas as montadas, os seus cavaleiros sem mão à rédea, os homens de fato a rodarem e abanarem a cabeça na busca da origem da musica.
Normandia saíu do esconderijo e avançando cantava em direcção aos rostos estupefactos dos dois estranhos.
E era tal o poder daquela garganta que eles já aflitos levaram as mãos às orelhas protegendo a vibração dos tímpanos que lhes fazía tremer a cabeça, o peito a estourar.
Os irmãos Botas apareceram de mão dada a fazer coro e depois América e Polónia e ainda mais e muitos mais e todos juntos como um troar da vaga que se despenca na praia, correram com a guarda montada que caíra em pinote dos cavalos e fizeram sangrar os ouvidos dos homens de fato escuro.
Talvez se tivessem usado umas rolhas de cortiça...




(Janeiro/2007)

O canapé e o dentista ou alguns sitios onde nunca se deve adormecer

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Viu catálogos, viajou na net, entrou e saíu de várias lojas de decoração, foi a leilões, bateu casas de antiguidades.
E em sitio algum encontrou o que pretendía: um sofá.
Se gostava da cor não apreciava os materiais, se a altura era a conveniente o modelo era detestável. E nada lhe servía, porque fundamentalmente não estava ciente da suas pretensões; porém, a certeza do que não quería sabia-o muito bem.
Deixou o tempo correr até se esquecer da compra do sofá novo e continuou a usufruír do velho.
Um dia, enquanto aguardava a vez de ser consultada no dentista e folheava sem se deter nas páginas de uma revista com mais de um ano, reparou aborrecida no velho canapé cor de beringela que ocupava o nicho por baixo do rasgão da janela. Primeiro só o olhou de soslaio, depois regressou lá a vista e por último levantou-se e dobrada sobre o assento, perscrutou o tecido em relevo procurando alguma eventual nódoa, falha na trama do tecido ou até um rasgão... estava simplesmente perfeito: os acabamentos em capitoné de latão avivavam aquela cor tinta e reluzente, as franjas em seda terminavam magnificamente enroscadas quase roçando o soalho mas sem o tocar, a madeira do contorno em cerejeira tinha já aquela patine ganha com os anos que lhe dava um toque aveludado só de o olhar.
Sentou-se e de imediato sentiu uma fornalha acesa nas nádegas, nas coxas até à curva dos joelhos. Pousou as mãos no assento, paralelas às pernas e a mesma sensação morna e confortável lhe tomou os dedos, os pulsos, subindo vagarosamente até aos ombros, pescoço, aquecendo as orelhas, as maçãs do rosto.


Como se estava bem naquele canapé!


Afagou o tecido meigamente, deslizando a palma da mão até à moldura de madeira rica em cerejeira; observou os seus dedos rosados contrastando com o tom encarniçado do estofado e reparou que um enorme anel de pedra amarela brilhava no seu indicador... Surpresa, viu o seu regaço coberto de uma saia longa de seda rosa cardeal e arminho; olhou o chão e não encontrou os seus pés: escondidos sob aquele tecido viu espreitar as biqueiras de umas chinelinhas bordadas à mão, em fio de ouro e prata: Ergueu-se assustada.
As mãos apalparam sob a pesada saia de seda uma armação rigida, formando duas conchas abaixo da cintura que lhe davam umas ancas volumosas e estreitavam o abdominal, agora espremido num espartilho branco que junto ao decote vomitava uns seios demasiado generosos para passarem despercebidos. O pescoço alvo e longo embebía-se de fiadas de pérolas frias e nacaradas. Passou a mão pelo rosto e sentiu um pó macio que lhe veio colado aos dedos e por instinto, sacudiu a cabeça mas um peso inusitado deduziu-lhe rápido que envergava uma cabeleira.
Mirou o seu reflexo nas vidraças da janela e encontrou-se empoada e de sinal postiço de tafetá preto no queixo.
Atrás de si ouviu a porta da sala de espera do consultório abrir-se e com grande espanto seu, viu a assistente do dentista entrar de touca de renda, corpete vermelho, saia e avental compridos, empunhando um castiçal de seis velas que aportaram uma luxuria nunca antes sentida.
Não teve tempo de proferir um som que fosse, pois logo atrás entrou o dentista, agora paramentado de calções de cetim amarelo, jaqueta bordada, peruca branca e lenço de renda na mão direita.


Dobrou-se gentilmente abrindo num gesto suave os braços e avançou na direcção dela, tomando-lhe a mão e repenicando um beijo húmido de saliva.
Ela sem fôlego para retorquir de tanta surpresa apenas abría a boca atavida de um carmim berrante destacado pelo pó que lhe descorava a face.
Sentaram-se os dois na beira do canapé, pernas na diagonal, roçando os tecidos que cobríam os joelhos. Ele reclinou-se sobre ela agarrando-lhe o queixo e num trejeito infantil ordenou-lhe que abrisse a boca. Ela obedeceu e enquanto ele arregalava os olhos para aquela toca molhada e vermelha o fura-bolos penetrava no rego dos seios apertados fazendo-a arfar como uma tísica. Depois mais afoito, foi-lhe descobrindo o colo níveo e macio ladeado pelo decote de arminho e num repente de animal atirou-se ao peito dela mordendo como quem come uma maçã.
Ela guinchou.
Ele levantou-se como uma mola e ágil de mãos desabotoou duas fileiras paralelas de botões na frente das calças, tombando um quadrado de tecido à laia de portinhola e desvendando um pano cru com nódoas amarelentas por baixo que lhe tapava mal um desejo em riste.
Ela soltou um gritinho de satisfação pela imagem em frente ao seu rosto e sem demoras ele empurrou-a para o leito do canapé, levantando-lhe as pernas ao alto, chinelinhas de bordado abanando na ponta dos pés miúdos, fitas rosas apertando meias altas até às coxas, panos de linho rachados ao alto preparados para facilitar a força da natureza e reveladores de uma exuberância capilar negra que muito se assemelhava a um focinho de gato assanhado.


Empoleirava-se ele nas biqueiras para com mais convicção domar aquela coquette, inchando os gémeos, agitando-se a peruca dela e a dele no rabicho preso num atilho de veludo negro, enquanto ela apertava os próprios seios vincando-os com o anel de pedra amarela.
Num frémito o dentista agitado babou-se e o canapé cor de beringela rangeu ao som de gemidinhos curtos e rápidos dela.
Entrou de novo a assistente de touca de renda, que trazía agora nas mãos um pano alinhado que entregou a ela ainda reclinada e descomposta, saias num desalinho amontoadas entre folhos, fitas e peruca à banda, seios inchados e descobertos pelo tumulto da manipulação.
Ele já refeito, repetiu o gesto delicado do cumprimento e recuando saíu em vénias, apenas restando a visão daquele lencinho a abanar.


Sentiu que alguém a chamava, a sacudiu um pouco até, um dedo a tocar-lhe no braço... soergeu-se, apurou a voz e a compostura, juntou os joelhos apartados e esticou num gesto a saia travada, passou a mão no cabelo alinhando-o atrás da orelha... a assistente com um trejeito malicioso olhava-a e repetiu que o "Dr. está à sua espera, vamos?".
Já de pé olhou ao redor e notou por baixo do rasgão da janela, o canapé que tinha prendido a sua atenção: achou-o velho e gasto, com molas partidas e covas no assento, uma lasca na madeira do rebordo, falta de latão no capitoné.
Reconheceu que tinha adormecido e aquele sonho não tinha passado de um devaneio do seu subconsciente focado na procura de um sofá. Esboçou um sorriso e olhou uma última vez o velho canapé, encontrando-lhe já na saída, uma pequena mancha escura e molhada, fresca de quem fizera amor.



(Dezembro/2005)

Memórias

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Afagou o rosto entre as palmas várias vezes, como que a afastar um mau pensamento da testa vincada pelos anos.
Os dedos, entortados pelo tempo e pelo reumático exibíam ainda no seu movimento, uma elegância habituada a unhas tratadas, cuidados de quem não fizera trabalho pesado, mãos que acarinham, o mimo do toque na projecção do que o coração sente ao tacto: prendeu a asa da chávena entre a pinça do indicador e do polegar, levando trémula a faiança até aos lábios engelhados. Queimou-se um pouco com o chá de jasmim, mas essa sensação de ardor lembrou-lhe que estava viva, que ainda sentía o calor e mais, ainda conseguía distinguir o que era a dor.
Talvez a familia a achasse tonta, desviada da realidade, perdida num tempo que eles nunca havíam conhecido...era bem verdade que o seu paraíso era a memória do que vivera, do que rira, por quem amara; mas tonta, não. Não era verdade!
Que pensavam os seus netos quando entre gracejos e piscadelas de olhos, lhe perguntavam aos gritos se quería "curtir" com eles?! Que sabíam eles da vida? Que sabíam eles da vida que a avó tivera?! Nada. Apenas a conhecíam agora, cuidadosa nos movimentos, lenta nas respostas. Mas isso só acontecía porque tinha já gasto e abusado da rapidez dos saltos, dos pulos de alegria, de montar a cavalo, de dançar e correr campo afora. E demorava a responder porque pensava no qua havía dito muitos anos atrás, de sopetão, a palavra na ponta da lingua, sagaz e viva. Agora, parecía que o filme da sua vida passava em ralenti para que não se esgotasse de súbito.
Deslizou um dedo sobre o sulco que se formava junto ao nariz esguio, sentindo a pele cavada pela ruga que engelhava a pele. Fechou os olhos. Recordou um amor que tivera em Inglaterra e com quem havía tomado o gosto pelo chá das cinco.
Retomou entre os dedos a caneta de tinta permanente e voltou à escrita, trazendo naquela tarde os sons do passado, a voz daquele saxão chamando-a "Mary", um chão de urze perfumada onde costumava rolar até ficar entontecida de perder os sentidos. Aspirou profundamente cheirando palpável aquele aroma adocicado. Ouviu distintamente o neto mais velho troçar, comentando como um sábio que a "avó Maria voltou a adormecer...está sempre a dormitar!".
A frase que deixara incompleta na recordação foi agarrada pelo aparo de ouro: registou com um magnífico ponto final, a descrição do acabar da guerra e o seu regresso a Portugal.
Tomou mais um gole de chá, já frio, e apertou na garganta a mágoa da severidade de seu pai, as suas imposições, o cinto de fivela metálica que por várias vezes lhe mordera a carne... a sua rebeldia e jovialidade levaram-na a um atelier e como modelo nu emprestou a figura ao quadro que agora enfeitava a parede por cima do aparador da sala de jantar.
Rapou o açúcar alojado no funda da chávena fina e tomou na ponta da lingua o gosto das gemadas que o pintor lhe preparava depois de ter estado imóvel e friorenta por mais de duas horas. Reparou que uma das suas noras a contemplava admoestando sobre a diabetes que agora a maltratava.
Que sabía aquela mulherzinha sobre o gosto do proibido, da vertigem de andar no alto do muro, o abismo como fundo, o coração a pular, a fuga de nós próprios, caleidoscópio de sensações?!
Olhou a mulher de seu filho desafiadoramente enquanto enroscava a tampa da caneta e a escondía entre as páginas tingidas daquele azul aguado da tinta. A nora advertiu-a sobre a necessidade de descansar e deixar os rabiscos de lado. Ela nem se incomodou a tentar dizer-lhe que havía muito que descansava: de nadar no mar bravio, de fazer disputas de corridas com o pai de seus filhos, de fugir de uma carga policial numa manifestação contra o governo, de sentir a tempestade a estalar-lhe molhada na cara, o sol a encadear o horizonte, das tardes a fazer amor.
Descansava também da chegada e da partida: dos que a havíam há muito deixado neste mundo, das surpresas que os homens lhe podíam fazer, da previsão das acções, dos gestos...tinha tanto tempo que a vida se tinha tornado uma agenda escrupulosamente cumprida.
A nora endireitou-a, acomodando-a no sofá, proferindo um "Prooontooo!!!" muito alto, tratando-a como uma tarefa arrumada. A saia um pouco descomposta revelou uma mancha na perna que a nora indagou; a sogra Maria não lhe respondeu, ajeitando a roupa de novo ao corpo... Como podería explicar a sua tatuagem feita por um feiticeiro africano? Para ela, assim como para os restantes, ela era apenas uma velha, a velha Maria, uma avó que sempre o fora.
Escavou nas suas saudades a mão negra do feiticeiro e repetiu para si como uma protecção, as palavras mágicas ditas naquele país vermelho, ía para mais de cinquenta anos. Acariciou a perna marcada, sentindo a pouca carne flácida... lembrou a dor que suportara naquele ritual e voltou a senti-la tão intensamente naquele momento como se agora a esgravatassem na pele. Recordou a dor dos partos dos seus três filhos homens, a dor da morte do seu marido, a dor da desilusão, a da traição, a da inveja e todas as outras que se guardam quando já se viveu tanto tempo.
O pequeno diário acolhido no regaço escorregou-lhe, como se a memória escorresse para um tempo perdido.
O filho do meio agarrou-o, aparando a caneta de tinta permanente.
Maria tirou-lho da mão lesta e convicta, e disse-lhe num tom baixo "Ainda não. Espera mais um pouco... ainda tenho tanto para me recordar".


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(Maio/2006)

A festa

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Demasiadas tequillas e demasiados cigarros trouxeram-lhe uma náusea difícil de aguentar.
Sabía que em breve tudo iría verter e não quería de forma alguma que isso se transformasse num espectáculo gratuito e pasto para comentários dos colegas.
Detestava aquelas festinhas de empresa em que todos se pretendem amigos íntimos uns dos outros e no resto do ano se aturam porque nunca se sabe o que o futuro reserva.
Mas este ano tudo era menos suportável e as lágrimas que abafava ao apertar os olhos escorríam para dentro da garganta tornando a boca acre. Achou que melhor sería gritar a plenos pulmões e assim, de algum modo exorcizar a dor que a consumía por dentro e se vía por fora.
Os homens rondavam-na, cheirando uma embriaguês permissiva mas ela nem os vía.
Um único havía no mundo para si, ali tão perto, bastava esticar o braço e agarrá-lo como tantas vezes fizera...e agora tão inacessível, tão desconhecido, tão concorrido de mulheres berrantes que disputavam entre elas um osso como faz a matilha esfaimada.
Vagueou por entre aquela gente estridente, abrindo caminho à força de "com licença" e o vómito eminente.
Escancarou a porta dos lavabos femininos e de joelhos como numa prece, despejou sumo de limão, álcool e mágoas profundas. A maior delas a rejeição, deitada em golfadas que lhe parecíam arrastar a garganta e as vísceras para um fundo de buraco negro.
Ficou ali, encostada à parede, suada , suja, azeda e miserável.
De olhos fechados desabotoou-se e ficou de soutien branco à espera da calmaria do chão frio que não parava de se agitar.
Um filme a cores projectava-se a uma velocidade atroz que não conseguía acompanhar, entontecendo-a pelas imagens nas quais aparecía como personagem maior de um enredo para o qual não tinha estudado o papel a preceito.
Quem lhe mandou apaixonar-se?! O que pensara conseguir dominar havía-a manietado de pés e mãos.
...Pés e mãos atados era uma imagem que lhe desenhava um sorriso. Sentiu nos pulsos a seda da gravata dele, nos tornozelos finos as mãos de homem grande como umas grilhetas em contraste com a boca macia passeando na curva dos joelhos, as mordiscadelas nas coxas...a espera do movimento seguinte que nunca era o que quería, o que suspeitava que sería, deixando-a ainda mais ansiosa, mais cativada e prisioneira da surpresa.
O jogo da sedução é um jogo arriscado, pensava agora, triste.
Voltou a natureza a impôr a sua força e de novo de quatro, se vergou para dentro do sanitário. Já exausta do esforço, permaneceu naquela posição, recordando a sua vulnerabilidade nas mãos e no corpo daquele homem grande que a cobría toda como um animal em cio, sem pudores nem palavras.
E ela gostava de o sentir forte, pesando sobre as suas costas, amarrado com os braços a uma cintura delgada como os cabos de um navio se prendem ao cais de embarque depois de terem atravessado o mar alto e conseguido vencer a vaga espumosa e branca da crista.
Tentou levantar-se e retomar a postura mas tudo rodava à sua volta e não conseguía apertar a blusa por lhe parecer que havíam agora mais botões que casas para os enfiar. De gatas puxou pelo papel higiénico e limpou o queixo, os olhos esborratados da maquilhagem desfeita em lágrimas. Tudo lhe parecía turvo. Descarregou a água por diversas vezes e o cheiro de azêdo desvaneceu-se. Por isso, quando viu as pernas dele cobertas pelo fato italiano de executivo aproximarem-se de si achou que o delírio continuava para além das suas recordações. E era tudo tão forte que essa fronteira entre o sonho e o real parecía ter-se esvanecido, porque sentiu as mãos de homem grande no seu pescoço, depois por baixo dos braços erguendo-a e amparando-a contra o tórax almofadado de músculos duros e por fim um frio intenso de água na testa, nos pulsos, no peito.
Abriu demasiado os olhos para se certificar da verdade mas o odor daquele homem grande era o suficiente para ela o reconhecer no meio da multidão e seguir o seu rasto até ao fim do mundo. Ela tinha para sempre o cheiro e o sabor daquele homem dentro de si, como um orgão que lhe pertencesse.
Pendurou-se no pescoço dele e sossegou de imediato.
E ele continuou com o seu lenço perfumado e molhado naquela água tão fria a limpá-la daquele nojo ácido.
Súbito a água já não lhe parecía tão gelada e quando ele roçou os seios dela e ambos sentiram calor, ele largou a sua tarefa e acariciou-a por cima do soutien branco, por baixo da saia travada, na curva quente dos joelhos. Ela deixou-se ir como plasticina que se molda, com o ruído ao fundo de gargalhadas de homens e mulheres, tilintar de copos e garrafas e alguém a bater à porta dos lavabos femininos.
Ignoraram as insistências do "está aí alguém?".
Ele procurou o lavatório e sentou-a aí afastando as pernas e a cueca de renda branca, entrando sem pedir licença. Ela abraçou-o com os braços e as pernas e cada batida na porta era o ritmo certo para os dois.
O lavatório rangeu, ele cedeu e ela um pouco depois.
Abotoou-lhe a blusa e desceu-lhe a saia, compôs-lhe o cabelo e transportou-a ao colo até ao tampo da sanita.
Deixou-lhe o seu lenço molhado na mão triste e abandonada e saíu destrancando a porta.
Ela estava agora completamente lúcida e sentía que era tempo de regressar a casa, pois a festa tinha terminado.
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(Agosto/2005)