Apanha-me!

 
 



Cheirava a terra molhada, suor, bosta de cavalo e aquele envinagrado do sangue que sempre parece deixar um rasto nas narinas mesmo que se fuja para longe.
Dói-lhe o braço, o ombro, a mão e nem mesmo o calo de anos de treino e a protecção de couro fino para que não perca a sensibilidade do fio, após tantas horas de disparo, consegue evitar o corte junto ao encaixe das articulações do dedo médio. Mas não pára, não baixa os braços, não se rende, incentiva os outros.
Já passaram cem anos e hoje é só mais um dia e não será neste que se vai entregar. Os gemidos e os gritos da dor lenta da morte não o afligem, habituou-se a eles, são os sons de campo de batalha, tão normais como o cantar da cotovia na sua aldeia. Aqui, em terra estranha e inimiga só existem estes cantares e até destes precisa ouvi-los para não esquecer, para sentir a raiva que lhe dá o poder de erguer o arco do seu tamanho, mirá-lo na extensão plena da sua corda fina e derrubar mais um francês acobardado naquela moita.
Fechou o olho esquerdo, o cotovelo direito ponteou elevando-se à altura do ombro, sente o fio tenso como uma corda da harpa de um bardo raspar-lhe o queixo, o nariz, a mão firme na direita do seu braço. Solta e ainda ouve o silvo da flecha cortar o ar, os gritos, o relinchar. Não sabe se acertou no alvo mirado, sentiu uma pancada na nuca e viu muito rápido junto à cara o verde revolto e espezinhado numa poça de sangue, depois tudo escuro.
Ouve sumido um linguajar que não entende, o chão a rodar, a cabeça próximo dos pés, cheira a fezes e urina, sangue e carne podre, tem terra na boca, nos olhos, sacode a cabeça e cospe. Está sentado no chão com mais companheiros, todos amarrados, foram apanhados, agita-se no frenesim da besta caçada e procura desesperado libertar-se do cativeiro, pedem-lhe os outros que seja digno e honrado nesta hora, que muitos sabem o que acontece aos arqueiros aprisionados. Ele também sabe mas não quer ser mais um.
O companheiro do seu lado é levado pelos cabelos até um tronco aparado e vermelho. Assentam-lhe a mão direita recolhendo os dedos apenas sobrando o médio. Resigna-se, cerra os dentes, sabe que chegou a sua hora e invoca o rei. O som seco do carrasco a separar o dedo poderoso cala por uns segundos o tempo. Empilham-se dedos roxos e cobertos de insectos ao lado do tronco. O arqueiro desfalecido é arrastado para um canto.
Chegou a sua vez, retiram-lhe as cordas para libertar o braço na amputação que o desonrará da sua linhagem. Chuta, esperneia, morde a mão respingada de sangue inglês do carrasco, cabeceia o seu opressor, urra e na surpresa de todos apanha a oportunidade e corre, corre, corre muito que a morte vem lá.
Sente-os no seu encalce, cheira-os mas ri como um louco e antes de desaparecer no nevoeiro que entretanto tombara, volta-se para trás e grita APANHA-ME! espetando bem alto o dedo médio calejado. Mas inteiro.