Tempos modernos

.

.






Cigarro cravado nos lábios, caneca de café a fumegar, o olhar penetrante a aguardar o flash que ilumina o ecrã. Lá vem ela, faz-se luz, agilidade no pulso e rapidez no click que se acomoda na concha da mão. Acede: entra no universo, afunila-se o cérebro nos cabos, motor de busca à velocidade da espera ansiosa. Mas a página impertinente faz-se rogada, o pisco intermitente do modem enlouqueceu, a porta atirada à cara esborracha-lhe a expectativa, dispara continua e furiosamente, tenta sair, entrar de novo. Nada. O monitor parece uma natureza morta. Desliga tudo, liga tudo. Repete-se nos gestos anteriores resultando o praguejar mais veloz do que a desenvoltura do mecanismo. Fecha os olhos, murmura abre-te sésamo. Nada se abre. Derrotado, vira as costas ao computador, bebe o café amargo e frio, acende dois cigarros, o terceiro queima malcheiroso no amontoado das beatas. A televisão mostra o mundo selvagem onde os leões dormitam arfantes à espera que as fêmeas façam o laço funesto à zebra assustada. Recolhe os joelhos ao queixo, sente-se só e acossado, as horas sem passar, muito cedo para dormir muito tarde para pedir ajuda. Olha o computador com piedade, afasta o teclado, racha um livro ao meio, as linhas de palavras fogem para os cabos mal ligados, empurra tudo o que é ficha. Nada se alterou.
Agarra uma caneta e num papel escreve: "Tempos modernos estes, em que a falta do computador me deixa triste. Que seria se não houvesse luz? E se tão pouco eu soubesse ler nem escrever?"

.

.
(Outubro/2007)

O poema

.

.

.







Escrevinhou-o com a mão esquerda em concha, a cabeça deitada sobre o mesmo lado a fazer sombra sobre as rimas, da direita tirou o sustento para as letras e pronto.
Estava dito.
Mas não queria que soubessem.
Era segredo.
Poesia é sempre segredo, que não viessem com coisas, aquelas que se arranjam para decifrar rebuscado nas concepções simples da vida o que de simples a vida é: Há fome, come-se. E poesia é pão. Mete-se aos pedaços na boca mas faz-se de modo fechado e recatado no alimento básico e reconfortante da massa que acomoda os sentidos ao lugar. Poesia é isso, sabe-se que existe mas não se conta, não se explica, saboreia-se no silêncio.
Agora depois de escrita, o problema acontecia: Onde escondê-la de olhos profanos?
A gaveta, a gaveta é um bom lugar para dormirem sossegados os verbos terminados em ar. Como o ar que falta quando se diz amar, devagar, suspirar, cantar. Não, a gaveta é remexida, devolvida a mãos inconscientes que amachucam o coração e o espremem até pingar no forro o sangue de quem a fez.
E dentro de um livro? Hum... espremida entre linhas muito rectas, muito sisudas, muito certas dos seus pontos finais e de interregnos de capítulos... Não! Vá lá entender-se a quebra dos versos no acatado da prosa e entre páginas de seu semelhante, como saber qual a poesia original? Melhor não!
Pois se do evidente tantas vezes se cega, que melhor sitio para a esconder se não à vista de todos?
Deu-lhe um beijo, lembrou-lhe ali mesmo já a saudade e contente do seu feito deitou a folha poética ao mar.

.

.
(Março/2009)

O homem

.

.

.





Isso.

Fecha os olhos, melhor cobrires o rosto com as mãos e esconderes das luzes o espelho que te escarra a carantonha. Vá lá, coragem! Coragem, homem! Tira a maquilhagem branca e o traço negro que tanta expressão te dá aos sobrolhos repuxados na interrogação de quem ainda tem perguntas para pôr.

E da boca?

Ah!

A BO-CA.

A boca grande que sabe rir vermelho no escarlate que fica agarrado à memória dos que te aplaudem!

Isso, fecha os olhos, esconde a vergonha de não seres tu quando o algodão embebido no tónico da vida à séria te apaga o fôlego de seres quem és. Agora és, agora já não. Perdeste aos poucos pelos corredores estreitos dos anos o engenho da bocarra escancarada no fato de palhaço quadriculado, que isto do palco ao camarim faz-se longo no esconde-esconde de nada haver sem serem as luzes do espelho que te cospe o que não és.

Chora homem, que o palhaço penduras no armário e colado ao vidro-prata alugas a vida a duas metades do que não és.

Fecha os olhos, dorme, o homem já descansa.



(Março/2008)

Os figos

.

.




Escuro.


Ao abrir a porta a madeira rangeu pelo sobrado, ele deu-lhe um safanão e ela gemeu ainda mais à luz amarelada de final de dia. Fechou-a, uma poça de água rodeou-lhe os pés descobertos nas alpergatas e ele bateu com força obrigando a madeira a dar mais um urro. Despiu a camisa molhada da chuvada setembrina.


Agradava-lhe aquela água. Era macia, pendurava-se em gotas minúsculas como diamantes roubados pela barba grisalha e descuidada. Ficou de calças, camisola interior, pés nus sobre a madeira quente.


Escuro.



Pela janela esquadrinhada pouco lume já saía do dia mas bastava-lhe.


Sentou-se, apoiou os cotovelos sobre a mesa e desembrulhou a dezena de figos, alguns pinguços, ambarinos, babosos de um mel que lhe picava as ventas e lhe aguava os olhos.
Meteu-lhes a unha, primeiro devagar, depois o polegar enterrou-se na polpa granhuda e escachou o fruto pela metade. Encostou-o à boca, à barba e rapou-lhe o miolo, olhos ao tecto, vigas de madeira silenciosas perante o acto, altivas, observadoras na sua carcomida existência à sublimação do homem lá num fundo comendo figos.
Papou-os à vez, carinhosamente, caridosamente lambidos até à pele, unhas peganhentas de tanto como os cabelos da barba ou o desvelo nas memórias corridas pelas mãos peganhentas de seu pai a dar-lhe figos à boca.


Rápido percebeu que dez tinham sido comidos com a força das duas mãos, tantos quantos os dedos que seguraram amavelmente a lembrança granulada e doce. Olhou as cascas desvairadas. Rangeu a madeira pela pena do fim.


Escuro.


Buscou vela e acendeu-a, buscou pão e juntou-lhe as peles e de olhos fechados tragou-as limpando as barbas aos fios de chuva e de algumas lágrimas.


Escuro lá fora, amarelo cá dentro, gemeu o sobrado e a porta de novo. Rios de água passavam a correr. Agachou-se e deixou partir o barco feito com o papel que lhe escondera os figos.



(Outubro/2008)