Memórias

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Afagou o rosto entre as palmas várias vezes, como que a afastar um mau pensamento da testa vincada pelos anos.
Os dedos, entortados pelo tempo e pelo reumático exibíam ainda no seu movimento, uma elegância habituada a unhas tratadas, cuidados de quem não fizera trabalho pesado, mãos que acarinham, o mimo do toque na projecção do que o coração sente ao tacto: prendeu a asa da chávena entre a pinça do indicador e do polegar, levando trémula a faiança até aos lábios engelhados. Queimou-se um pouco com o chá de jasmim, mas essa sensação de ardor lembrou-lhe que estava viva, que ainda sentía o calor e mais, ainda conseguía distinguir o que era a dor.
Talvez a familia a achasse tonta, desviada da realidade, perdida num tempo que eles nunca havíam conhecido...era bem verdade que o seu paraíso era a memória do que vivera, do que rira, por quem amara; mas tonta, não. Não era verdade!
Que pensavam os seus netos quando entre gracejos e piscadelas de olhos, lhe perguntavam aos gritos se quería "curtir" com eles?! Que sabíam eles da vida? Que sabíam eles da vida que a avó tivera?! Nada. Apenas a conhecíam agora, cuidadosa nos movimentos, lenta nas respostas. Mas isso só acontecía porque tinha já gasto e abusado da rapidez dos saltos, dos pulos de alegria, de montar a cavalo, de dançar e correr campo afora. E demorava a responder porque pensava no qua havía dito muitos anos atrás, de sopetão, a palavra na ponta da lingua, sagaz e viva. Agora, parecía que o filme da sua vida passava em ralenti para que não se esgotasse de súbito.
Deslizou um dedo sobre o sulco que se formava junto ao nariz esguio, sentindo a pele cavada pela ruga que engelhava a pele. Fechou os olhos. Recordou um amor que tivera em Inglaterra e com quem havía tomado o gosto pelo chá das cinco.
Retomou entre os dedos a caneta de tinta permanente e voltou à escrita, trazendo naquela tarde os sons do passado, a voz daquele saxão chamando-a "Mary", um chão de urze perfumada onde costumava rolar até ficar entontecida de perder os sentidos. Aspirou profundamente cheirando palpável aquele aroma adocicado. Ouviu distintamente o neto mais velho troçar, comentando como um sábio que a "avó Maria voltou a adormecer...está sempre a dormitar!".
A frase que deixara incompleta na recordação foi agarrada pelo aparo de ouro: registou com um magnífico ponto final, a descrição do acabar da guerra e o seu regresso a Portugal.
Tomou mais um gole de chá, já frio, e apertou na garganta a mágoa da severidade de seu pai, as suas imposições, o cinto de fivela metálica que por várias vezes lhe mordera a carne... a sua rebeldia e jovialidade levaram-na a um atelier e como modelo nu emprestou a figura ao quadro que agora enfeitava a parede por cima do aparador da sala de jantar.
Rapou o açúcar alojado no funda da chávena fina e tomou na ponta da lingua o gosto das gemadas que o pintor lhe preparava depois de ter estado imóvel e friorenta por mais de duas horas. Reparou que uma das suas noras a contemplava admoestando sobre a diabetes que agora a maltratava.
Que sabía aquela mulherzinha sobre o gosto do proibido, da vertigem de andar no alto do muro, o abismo como fundo, o coração a pular, a fuga de nós próprios, caleidoscópio de sensações?!
Olhou a mulher de seu filho desafiadoramente enquanto enroscava a tampa da caneta e a escondía entre as páginas tingidas daquele azul aguado da tinta. A nora advertiu-a sobre a necessidade de descansar e deixar os rabiscos de lado. Ela nem se incomodou a tentar dizer-lhe que havía muito que descansava: de nadar no mar bravio, de fazer disputas de corridas com o pai de seus filhos, de fugir de uma carga policial numa manifestação contra o governo, de sentir a tempestade a estalar-lhe molhada na cara, o sol a encadear o horizonte, das tardes a fazer amor.
Descansava também da chegada e da partida: dos que a havíam há muito deixado neste mundo, das surpresas que os homens lhe podíam fazer, da previsão das acções, dos gestos...tinha tanto tempo que a vida se tinha tornado uma agenda escrupulosamente cumprida.
A nora endireitou-a, acomodando-a no sofá, proferindo um "Prooontooo!!!" muito alto, tratando-a como uma tarefa arrumada. A saia um pouco descomposta revelou uma mancha na perna que a nora indagou; a sogra Maria não lhe respondeu, ajeitando a roupa de novo ao corpo... Como podería explicar a sua tatuagem feita por um feiticeiro africano? Para ela, assim como para os restantes, ela era apenas uma velha, a velha Maria, uma avó que sempre o fora.
Escavou nas suas saudades a mão negra do feiticeiro e repetiu para si como uma protecção, as palavras mágicas ditas naquele país vermelho, ía para mais de cinquenta anos. Acariciou a perna marcada, sentindo a pouca carne flácida... lembrou a dor que suportara naquele ritual e voltou a senti-la tão intensamente naquele momento como se agora a esgravatassem na pele. Recordou a dor dos partos dos seus três filhos homens, a dor da morte do seu marido, a dor da desilusão, a da traição, a da inveja e todas as outras que se guardam quando já se viveu tanto tempo.
O pequeno diário acolhido no regaço escorregou-lhe, como se a memória escorresse para um tempo perdido.
O filho do meio agarrou-o, aparando a caneta de tinta permanente.
Maria tirou-lho da mão lesta e convicta, e disse-lhe num tom baixo "Ainda não. Espera mais um pouco... ainda tenho tanto para me recordar".


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(Maio/2006)

5 comentários:

pin gente disse...

tanto amor.
tanta vida.
tanto coração.
tanta verdade.

gostava de um dia contar assim o meu passado (apesar dos pesares).
muitos parabéns
luísa

marisa disse...

que íntimo tão bem retratado! há um contraste brilhante. ao contrário da realidade física, ficamos com a sensação de que enrugada está a alma dos mais novos, lisa e vital a da Velha Senhora.
bj
marisa

o Reverso disse...

escrever estas coisas...

é precisa muita sabedoria.

sabedoria que só o passar dos anos pode dar. e têm que ser muitos.

qual a tua idade?

300 ???

Mateso disse...

Escorre o passado por entre s palavras. Sopra a vida por entre as memórias. Idade? Não! VIda!
Soberbo!!!!!
Bj.

SONY disse...

Ai Gas tu das cabo de mim.
Já o li à algum tempo mas recordo-me de todas as palavras e até do comentário que te deixei, se não estou em erro falei-te que me fizeste lembrar a minha avó, uma grande senhora.
Estou a ver que este teu blog vai ser o meu de eleição.

jito,Sony