Casamentos

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Quando recebi o convite para a boda da minha prima, a primeira coisa que me ocorreu foi o meu desconhecimento sobre o facto de ela estar noiva. Ou melhor, ter um namorado. Na verdade, nunca mantive uma relação continuada com esta prima, talvez por isso o cartão de 1ª qualidade com marca de água, escrito numa caligrafia sóbria mas distinta a endereçar a sua vontade de me ver presente no seu casamento tenha sido, de facto, a maior surpresa.
Andei ali uns dias a remoer sobre o assunto até que o esqueci de vez. Quase às vésperas da cerimónia, sobressaltei-me com a questão prática do telefonema a justificar a minha ausência mas quando me preparava para pegar no aparelho o dito soou: mais não era do que a prima noiva. Não cheguei a informá-la da minha intenção de escapar, já que ela argumentou sempre como se conseguisse ler o fio do meu pensamento. Então, não tive outra hipótese senão alugar um fraque às pressas, ainda com cheiro de benzina de anteriores limpezas e pedir a uma amiga que me comprasse qualquer coisa que figurasse como presente de casamento.
No dia aprazado, acordei fora de horas, depois de ter passado uma noite de pesadelos que me deixou cansado e com uma dor de cabeça pulsante. Foi numa correria que me preparei e o facto de envergar um traje que não era meu, acrescido de um sábado tórrido de Julho trouxeram-me uma sensação desconfortável que me sufocava como um aperto na garganta.
Quando cheguei ao bairro antigo onde a cerimónia tería lugar, vi irritado, que sería praticamente impossível estacionar ali: as ruas apertadissimas, serviam portas de entrada sem espaço algum entre elas e os seus habitantes fizeram-me temer pelo desaparecimento da minha viatura. Deixei o carro num sitio ermo e longe, o bastante para me pôr a suar na caminhada inversa como pedestre. O pior foi não dar com a porta. Tudo me parecía igual: as ruas, as entradas, as varandas, os vasos de sardinheiras, até os lençóis amarelados pendurados de varapaus, que ao menor descuido esbofeteavam-me.
Tonto de andar às voltas e retornar sempre ao mesmo ponto, inquiri uma velha de bigode digno de um cabo, que mirava as minhas idas e vindas lá do alto da sua varanda; mas a velha enfiou-se para dentro e nem a salvação me deu.
Comecei seriamente a pensar em voltar para o carro, tomar uma aspirina, até porque a hora da boda já tinha passado... foi quando avistei o hospital defronte da morada que a minha prima me tinha dado, e que servia de referência para o local. Apressei-me até à entrada e quando estiquei a mão para bater na aldraba notei como esta em forma de garra pareceu abrir-se para me tocar na face. O instinto foi recuar. Mas era apenas uma aldraba, antiga, muito antiga decerto, em forma de garra, de ferro com algum verdete e imóvel como todos os objectos de ferro o são.
A porta escancarou-se vindo de dentro um fresco agradável, quase primaveril nas doze horas daquele Julho. Entrei. Rodei a cabeça em redor: parecía uma câmara de pedra, o chão de largos seixos encravados numa terra muito batida e apertada. As paredes eram igualmente de pedras mas de um tamanho monumental como penedos e no da frente, cravados na rocha polida, três aros de ferro. O que mais estranhei foi terem um vinco brilhante que os gastava no centro. Por baixo destas argolas uma larga bacia rectangular em pedra mármore, comida nalguns pedaços da beirada. Ao lado duas portadas de madeira, gigantescas, e nas ferragens um desenho como nunca vira na minha vida.
Ouvi passos a chegaram a mim e procurei o seu som: por de trás, sobre a direita, apareceu uma senhora pequena e reconheci de imediato na sua fisionomia que já nos havíamos encontrado em anteriores ocasiões. Mas não conseguía recordar de onde, nem quando, nem em que circunstâncias... a cabeça estalava de dor e eu só ansiava que tudo terminasse.
A senhora pequena identificou-se como a mãe do noivo e tinha um sotaque deveras peculiar: falava um português sem erros mas com uma acentuação francesa e no final das frases emitia um estalido com a lingua, que lhe fazía descaír ligeiramente os óculos sobre o nariz afiado.
Deu-me o braço elegantemente e apesar da sua estatura minúscula e a voz ciciante enchia a "entrrada" como ela lhe chamou. Puxou-me delicadamente para a direita, a indicar-me o caminho a seguir e foi quando notei que se abría uma estreita escadaria em sobrado que subia para uma escuridão acima, ladeada de paredes de azulejos branco e azul em que figuravam a tamanho natural, homens de peruca e libré. Das suas bocas saíam palavras que inicialmente pensei serem em latim mas eram para mim abstractas, pois por mais que tentasse juntar as letras não conseguía arranjar um sentido para elas. Olhei de relance para a minha esquerda e lá estavam as mesmas figuras com frases a saírem das suas bocas como bolas de sabão, mas deste lado, eram perfeitamente compreensíveis e formulavam o seu agrado por me terem recebido e em como sempre sería benvindo se fosse de fé.
A minha anfitriã, de seu nome Eva Lameur soltou um risinho de rato e apressou-se a esclarecer-me: do lado direito, as frases estavam escritas da direita para a esquerda, para quem vai a subir e perguntavam: "Vens por bem?", depois na figura acima "Se o bem te traz, V.Senhoría soía benvinda" e sempre a subir o homem de azulejo bicolor advertía às virtudes e pureza do coração para aquele que chegasse até lá ao alto da escadaria. No lado direito era para quem fosse de partida e claro, estava escrito da esquerda para a direita, agradecendo as honras feitas à casa visitada e abrindo as suas portas de novo se fosse alguém de caridade.
Eva acrescentou que a casa era do tempo do "Marrequês" e nessa altura havía toda uma série de etiquetas a cumprir, protocolos e outras coisas que já não me recordo pois só pensava o que sería um marrequês.
Atingimos o topo da escadaria e uma empregada fardada veio abrir-nos as portas.
Eu, só consegui abrir a boca.



Tínhamos desembocado numa sala exígua de luz pardacenta com cheiro quente de encerado e defronte da porta em que assomámos, um espelho veneziano que nos devolvía todo o nosso tamanho a par com uma figura belíssima em talha de um negro de calças vermelhas, tronco nu, turbante e tocha na mão, muito maior que nós.
Eva Lameur deu-me um puxãozinho na manga do fraque e com aquele estalido na ponta da língua fez-me passar para um corredor que me pareceu infindável quando o olhei de relance, para logo a seguir abrir as portas do salão onde finalmente a cerimónia ía acontecer.
Parecíam que me aguardavam tão só.
A primeira sensação que tive foi que não conhecía ninguém. Procurei entre os convidados caras de familiares, a minha mãe ou o meu tio, talvez até um parente mais afastado. Mas os rostos que se dirigíam a mim, sorridentes e cumprimentando polida e reconhecidamente, eram perfeitos estranhos. Dizíam o meu nome de uma forma cortês e acalorada dirigindo-se-me na 2ªpessoa do plural.
Eu aceitava aquelas mãos que abanavam a minha e por vezes ambas e os encostos de face à laia de beijos aflorados como se partilhasse das suas vidas.
A minha prima surgiu das alas desenhadas pelos convidados, com um sorriso maravilhoso e um vestido de noiva tão branco, que parecía ter constantemente um halo de luz a rodeá-la. Era a noiva mais perfeita e bonita que alguma vez vi. O vestido, segundo me sussurrou ao ouvido quando me abraçou, era uma jóia da familia Lameur, e havía sido restaurado propositadamente para ela. Na cabeça, a rodear a testa, camélias brancas que exalavam um perfume adocicado e que ainda agravou mais a minha dor de cabeça. Estranhei o odor... as camélias não têm cheiro.
E depois, o grande momento: o noivo misterioso apareceu pelas minhas costas, esticou a sua mão pequena à minha e puxou-me para si estreitando-me e dizendo com o mesmo sotaque de sua mãe "bem vindô à famille", terminando com o tal estalido especial.
Era um homem louro de uma tez quase transparente, com as veias azuladas a sobressaírem nas têmporas. Mas o que me impressionou deveras foram os seus olhos, de um negro profundo como um poço, em nada coordenados com as suas caracteristicas nórdicas.
Veio-me à memória um filme de extraterrestres. Marc Lameur sorrindo gentilmente, apenas me disse para eu não me assustar com os seus olhos. E afastou-se para junto da prima noiva.
Os convidados parecíam que tinham acabado de receber uma ordem colectiva, pois de imediato se sentaram como um exército, alinhados nas cadeiras dispostas em fila e viradas para uma secretária de pau-preto que pelo seu tamanho, devería pesar bem mais do que uma tonelada. A presidi-la uma Conservadora com ar assustado e pálida, de óculos de massa maiores que o seu rosto, alguma caspa enfeitando os ombros escuros do cardigan que envergava.
Procurei uma cadeira vaga e lá encontrei os meus pais e os meus tios e primos, elegantemente sentados e que apenas me fizeram um meneio de cabeça como sinal de "silêncio, vai começar".
E começou qualquer coisa que não recordo, pois ouvía um espécie de zumbido como som de fundo, o que me permitiu passear as vistas pelo salão.
Era um salão de um palacete, disso eu não tinha dúvida. O tecto, pintado de uma forma esbatida, usava e abusava de dourados nas ramagens; Três anjinhos gordos e nus oferecíam bagas vermelhas a uma donzela de seios pequenos, descomposta na sua preguiça estiraçada junto a uma árvore, uma melena desviada do resto do penteado e os olhos... reparei então... que os olhos eram todos negros como os do noivo!
Sobressaltei-me. Não com o que vira mas com o som de um piano, em que as cordas vibravam um minuette picado.
Eva Lameur, deleitada pelos sons emitidos, prolongava no teclado um "vibratto" muito treinado.
O casamento civil estava oficializado.
Pensei que sería uma boa altura para saír e tentar tratar das marteladas que sentía dentro da cabeça, mas por outro lado, havía qualquer coisa inexplicável que me mantinha ali, fascinado com aquela casa, aqueles olhos escuros na sua totalidade sem branco a sobressaír, os "frescos" do tecto.
A minha curiosidade aumentava de tal forma que me comecei a sentir inquieto, nervoso. E observado. Tentava que esta ansiedade não se revelasse, mas para qualquer lado onde rodasse a cabeça ou dirigisse o olhar, lá estava o noivo Lameur expelindo baforadas de um cigarro interminável.
Comecei a sentir-me tonto, como se andasse num carrosel em que as voltas não têm fim. Levei as mãos ao rosto e disse para mim próprio que a imagem permanente daquele homem estranhissímo só podería ser o reflexo de alguns espelhos que decoravam o salão. Chamei a razão e atribuí o meu desatino ao calor do Verão.
Quando encarei novamente, ele lá estava à minha frente sobre a direita. E também sobre a rectaguarda à esquerda e à direita. E espelho, só um enorme, sobre a lareira.
Decidido, caminhei até ele pronto para o fazer confessar que truque era aquele mas quando atingi a sua imagem, só a minha prima muito feliz aí estava: pendurou-se no meu pescoço e segredou-me que o melhor estava para acontecer. O tal cheiro das camélias provocou-me um enjoo, que pensei, não conseguiría aguentar dentro do estomâgo, mas de imediato senti uma palma aberta sobre o meu abdominal, empurrando este orgão contra as costas: Marc Lameur, bafejando-me às orelhas um hálito denso confirmava aquilo que a sua agora esposa acabara de me dizer.
Senti nesse momento que muito tempo, muitas horas havíam decorrido, como um filme de longa-metragem que assistimos em cenas remoídas, frames repetidos e parecem nunca mais ter fim.



De facto, a Conservadora e o ajudante não estavam mais presentes e o grosso dos convidados, entre os quais a minha mãe e o meu tio havíam já partido.
Surpreendido notei que a minha dor de cabeça desaparecera. Por completo. Nem sequer uma moinha para me lembrar...
Um copo prateado enfeitava a minha mão: o recém casal e Eva Lameur com um sorriso, incitavam-me a beber.
Não me recordo como aquele copo veio até mim. Levei-o aos lábios, mas num instinto olhei para o seu interior: não conseguía ver nada, descobrir que bebida era aquela sem cheiro ou algum gás que se soltasse em bolhinhas até ao nariz. Havía de facto um liquido qualquer dentro do copo prateado mas nomeá-lo era completamente impossível!
A minha prima chegou junto de mim e amparando-me a mão, sorrindo sempre e num tom baixo de voz dizía repetidamente, "bebe, bebe, bebe" e guiava o meu braço até à boca.
Bebi.
Era um liquido espesso, de gosto ligeiramente acidulado, na verdade não muito agradável.
Fiz uma careta e com as costas da mão enxuguei um fiozinho que senti escorrer-me pelas comissuras dos lábios.
E como um borrão, vi uma mancha de sangue, o punho da camisa branca já tingido daquele encarnado.
Atónito, primeiro pensei que me tinha mordido, depois que o copo tería alguma falha e um golpe no lábio havía feito aquela marca. Mas assim que olhei aquelas três figuras à minha frente tive a certeza absoluta de que era um acto premeditado e dei um salto atrás, aterrorizado. Pareceu-me que eles se destacaram de um fundo e se colaram a mim nesse instante. Eva Lameur ciciou que agora eu "erra da famille e podía darre continuidade ao nome de Lameurre" caso a recente esposa se saísse mal nas suas funções. E terminou com um estalinho.
Aos gritos perguntei que raio de brincadeira de mau gosto era aquela e que não pertencía a familia nenhuma! A minha prima pediu que me acalmasse mas o que eu não quería mesmo era ter calma. Tentou seduzir-me dizendo que a partir de agora eu era um eleito e um novo mundo estava aberto aos meus olhos, às minhas sensações.
Marc Lameur fumava o tal cigarro sempre do mesmo tamanho e com um gesto delicado indicou-me uma poltrona.
Tudo o que eu quería era saír dali e esquecer que tinha tomado um gole de sangue, pelo que permaneci de pé, indignado e decidido a obter respostas a todas as minhas perguntas.
Ele sentou-se. A agora sua esposa acomodou-se enrolada no vestido de noiva a seus pés, e Eva Lameur colocou-se por detrás da poltrona. Os outros poucos convidados perfilaram-se como um cenário.
E quando me preparava para ouvir uma explicação plausível, ouvi distintamente um trotar sincopado para logo a seguir escutar os cascos de um cavalo, mesmo por baixo do salão onde nos encontrávamos.
Eva Lameur esgaçou um sorriso e informou "Tiens! Est t'arrivé!".
Depois o som do sobrado a ranger e as passadas cada vez mais próximas. As portas do salão abriram-se e uma figura igual às do azulejo branco e azul, de peruca e casaca, entrou truinfalmente.
Senti um baque, a boca seca, o salão e os demais a fugirem-me do alcance dos olhos para logo de imediato se deslocarem às suas posições definidas por uma marca invisível.
Todos se dobraram ligeiramente, as senhoras segurando as saias como abas. Eu permaneci erecto e estupefacto e no meio daquela loucura toda deitei a cabeça para trás tentando apagar da minha memória aquele dia que parecía não acabar mais. Mas só consegui ficar mais surpreendido, pois a gentil donzela do "fresco" do tecto havía desaparecido restando os três gordos anjinhos numa azáfama de colheita de ramagens douradas com pendentes de bagas vermelhas.
Aquele que acabara de entrar era venerado por todos e a minha prima conduzida pela ponta dos dedos trouxe-o até mim sussurrando algumas palavras que não percebi. Eva Lameur aproximou-se também e anunciou o "Marrequês". O seu filho Marc fez um sinal à criadagem e uma rodada de copos prateados foi servida. Recusei, mas polidamente; sentía que devía ser gentil, não o sei bem porquê.
O Marrequês ou melhor o Marquês, olhou-me nos olhos e vi neles o tal negro intenso sem fundo. Palavras saíram da sua boca mas não entendi uma sequer, pois falava às avessas como o seu homónimo da escada. Eva Lameur traduzía num português arranhado que eu "nada devía temer já que era de bem".
Bebi.
Não o posso dizer a contragosto. Bebi e gostei. E gostei também da donzela descida do tecto surgir-me de seios pequenos desnuda, colar os seus lábios aos meus e não recordo mais nada.
Voltou a dor de cabeça a martelar-me como um eco.
Agora as luzes do salão estavam acesas, eu estiraçado no banco do piano, um copo prateado e vazio, tingido de vermelho no bordo apoiava-se em duas notas do teclado marfim e negro.
Ninguém. Não havía mais ninguém no salão. Apenas eu e os restos de uma festa de casamento. No tecto, as figuras desbotadas e imóveis.
Dei com a porta de saída e desci a escadaria de sobrado lendo vagarosamente as legendas saídas das bocas dos vários marqueses azuís e brancos, agradecendo a minha visita.
Olhei, já na antecamara de pedra, as três argolas de ferro cravadas na parede: um pedaço de arreio bulía mansamente com a aragem fresca que o anoitecer tinha trazido. Da porta gigantesca ao lado, espreitava um pequeno mas cuidado jardim labirintico que num relance olhei, por recear nele me perder para sempre. Mas era notório o brilho encarniçado de umas bagas que pendíam por todo lado.
Fugi dali e engoli em seco.
Tentei recordar o caminho até ao meu carro estacionado mas a dor de cabeça atormentava a minha lucidez. Parei na rua, vi o Hospital defronte e a velha do buço a apontar-me o caminho.
Andei. Por quanto tempo não sei. O dia começou a clarear e lá vi a pintura baça do meu carro, isolado.
Meti a chave no canhão e foi aí que vi no dedo anelar da minha mão esquerda uma aliança de casado. Tentei passar as imagens em sentido inverso e lembrar em que ponto é que aquela anilha tinha ido ali parar. Mas nada, tudo em branco, estava demasiado cansado e só quería chegar a casa e tirar aquele fraque com cheiro de benzina.
Atirei-me para o volante e ajeitei o espelho retrovisor à imagem da minha cara.
Estava extenuado e só os meus olhos brilhavam um negro profundo como um verdadeiro Lameur.




(Julho/2006)

Capital, Março de 17

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Nem pensar-te.

Não te devería escrever ou tão pouco recordar-te, atormentaste-me a noite, a voz, sempre a tua voz no sussurro do canto do quarto ou no canto de mim, todos os recantos que tão bem conheces e ainda as lágrimas que inundaram a nossa cama no dilúvio da tua perda, os gritos e as mãos a fugirem, dedos que arranham o pesadelo de te saber que afinal - eu sabia-o! - afinal só sonhei!Porque me fazes isto? Porque chegas em pó de nuvem e te vais na salga do choro que desespero quando acordo e te sei longe e que no fundo nunca mais voltarás?!

Sabes, há agora um silêncio tão fundo que me crava como um punhal, aquela dor quente e que arde e até parece que nem dói... só quando se puxa o cabo e a lâmina espelhada tinge carmins de paixão...Sonhei contigo sim, não tenho vergonha de o confessar! Mas não te desejei, apenas te odiei por não me quereres.

E para veres que estou bem, tão bem e nem te penso, beijo-te.

Não, mordo-te a boca.



(Março/2008)

Capital, Março de 16

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Hoje não te devería escrever. É que estive de volta de velhas cartas que te enviei e a mim voltaram, num efeito de dor reforçada, primeiro no envio depois na lembrança de abrir a ferida e vê-la sangrar de novo.

É estranho encontrar naquele papel amarelecido as mesmas vontade de agora, a mesma força que me impele a continuar a carregar esta cruz de te querer saber, seja lá onde te perdeste. Que eu sei-te perdido desde o dia em que te vi as costas a afastarem-se num passo lento até muito depois pareceres apenas um pontinho perdido num horizonte e o olhar já nada mais consegue distinguir.

Releio e cheiro estas velhas cartas devolvidas à espera de nelas sentir o teu cheiro a sândalo, uma pequena mancha na tinta esborratada de uma lágrima que tivesses descuidado pingado na saudade de voltares.

Mas nada acho, já busquei todas, juntei-as ao peito e silenciosas como tumulos atei-as no cordel pardo com que as uno.

Um beijo, sim hoje um beijo, porque não?! Se dantes te beijei porque não fazê-lo agora?



(Março/2008)

Capital, Março de 15

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Mais umas linhas. Poucas para o tanto que tenho para te dizer, talvez tanto do que não houve tempo para te cuspir naquela altura e que diferença nenhuma faría já que estavas determinado em ir-te.


Continuo sem saber de ti, mas sei que me recebes, apenas calas a certeza da minha razão. Eu entendo. Custa aceitar perder, não é? Não respondas. Retórica, já o sabes. São as retóricas que agora fazem o meu dia mas teimo em sonhar e em escrever-te a achar que um dia mesmo envergonhado de sol, tu terás o gesto de me dizeres eu sei, apenas isto, que sabes. Eu também.Talvez não te apercebas do que estás a perder. Além da macieira florida o meu cabelo cresceu de novo, longo como tu gostavas dele, um quase véu que me cobría a linha das costas, aquela que divide a meio e onde tu gostavas de distraír os dedos... Um dia vais saber que sabes.


Ainda não é hoje que te mando um beijo. Primeiro tens de lembrar a que sabía.

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(Março/2008)

Capital, Março de 14

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Não tenho recebido noticias tuas. Não te sei. Tão pouco se das minhas recebes o gesto que deito na mão embrulhada neste papel e em que desenho oblíquo saudades rebuscadas no mais infimo tique que me deixaste. Sabes, por aqui a Primavera já me canta, a macieira que plantaste e que mirrada se manteve tanto tempo explodiu numa felicidade em flor, cores de açúcar, um quase adoçar da tua ausência, talvez tenha esperado que te fosses para depois se exibir.


Não sei de ti já to disse, e volto a este emaranhado de ideias sem assento nem pontuação onde não sei onde parar para respirar nem marcar a traço ponteado a exclamação interrogada onde pudesse, quem sabe, gritar por ti.


Como não te sei não mando beijos. Talvez se perdessem em lábios famintos.

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(Março/2008)