Devorée

 

 
 
Duas voltas nas fitas de seda bem cingidas aos tornozelos calejados.
Ágeis, as mãos rodeiam os pés apertados nas sapatilhas gastas e esburacadas junto aos dedos. Bate com a ponta de um pé, depois o outro no gesto repetido, com força, a acamar pé e sapatilha num todo.
E era ver como num efeito dominó na sua queda, pernas e pés a fazerem os mesmos gestos, os mesmos batimentos de ponta e calcanhar, pequenas flexões de joelhos orientados para fora, ajeitando as meias longas.
Primeiro, o trabalho de barra, o aquecimento. Cinco posições base como as mudanças de um carro veloz que  se desenvolve na estrada. Plié, relevé, plié, relevé cantados num ritmo certo, acompanhando notas marteladas num piano negro que contrasta imóvel com a amplitude de braços que sobem e descem, curvas de pé, coup de pied. E pirueta para  voltar a repetir, ligado à barra de madeira já arqueada de mãos suadas, todos os movimentos e curvas para o outro lado.
No centro. No chão, trabalho de abertura de pernas. De pé, agora na diagonal para se aproveitar todo o espaço do salão: os primeiros acordes marcam a partida para o troca-passo, jeté e pirueta a tempos certos que não pode haver atrasos que já trazemos na cauda outros a copiarem os movimentos.
Há gritos, compassos marcados por palmas e bastões que tocam o soalho como no tempo de Molière.
Há desespero na falta de força nos gémeos para subir nas pontas e descer e subir de novo e rodar em duas e três e quatro voltas e ainda sorrir, mesmo sangrando, mesmo a doer por dentro que o limite está próximo.
Tempo de matar a sede, matar a coreografia, ataviar o tutu, confiarmos no par.
Cheira a suor, a desejo, a vontade de dar entranhas.
O que já desesperou dá força agora.
As mãos dele rodeiam a cintura tal como as fitas da sapatilha bem cingidas ao corpo, orientando a perna dela semelhante a um compasso, riscando no ar circunferências de paixão. Gira entre as mãos como um pião lançado, rodopiando ao sabor da vontade dele. Queima no corpo as mãos que agarram, deixam marcas indeléveis, pegadas digitais como pisaduras negras do embate, laços invisíveis que só os sentem quem dança.
É no sous-sous ponteado, no erguer ao alto, nos braços fechados ao peito, no roça mas não toca de lábios que se querem que arda este fogo.
É o amor da dança. É a conquista renovada a cada novo par. É descobrir o querer e o dar ao confiar neste e no outro e naquele também. É a paixão a cada acorde solto.
Quem se iniciou está envenenado irremediavelmente.
É sofrer por tanto se amar, tanto se dar, ser-se feliz.
É como o veludo onde cai o ácido: é tecido devorée.
Marca para todo o sempre deixando desenhos no corpo e na alma, o toque entre o macio do veludo do movimento e o carcomido do ácido na pele, do desejo de mais a queimar.
 
8 de Fevereiro 2006