Tenho medo do escuro


 
 
 
Sabes, espero que um dia não haja noite.
Não venha o luar a projectar a minha sombra à luz deste candeeiro amarelo, eu muito esticada no chão cinzento como uma cuspidela puxada para escolher equipa, enquanto o fumo do cigarro amarga as horas de espera até ter que retocar o baton, sorrir e marcar o preço.
Esta parede que me ampara à escuta do silvo da bala está gasta. Está quente de nela me roçar, maltratá-la com o salto afiado do sapato, vingando-me finamente da cacimba que me faz tossir e do frio que tenho entre as pernas.
 
Lá vem ele. Dou-lhe o cardápio consoante os olhos dele se demoram por mim. Não quer, arranca e vai meter a primeira para outra viela esburacada.
Outro cigarro e uma pastilha elástica para enganar a fome de casa, da cama que é só minha, dos rangidos que gemem quando lhe ofereço o meu corpo calejado de outras camas, espancado de tanto deitar e erguer, moído de levantar deuses em homens.
O sino da igreja bate horas, poucas, muito para o que me falta. Ainda o cão há-de passar por mim, cheirar nas minha mãos a festa amiga, desconfiar na cauda baixa o mesmo medo que eu e afastar-se para um caixote de lixo como alimento dos meus sonhos.
 
Vou agora. Sem conversa. Levo-o atrás acompanhado da minha sombra.
Dispo a roupa, a cara, o miolo. Quando entrar em mim não vai encontrar nada, está tudo ali a monte, amarfanhado numa cadeira que serve de cabide. Ele deixa as meias num sinal de decência que o liga à terra e aqui, agora, é o inferno.
Baba-se, está faminto de mandar, comandar a ilusão que lá fora prostitui-se às regras. Sente vergonha de eu saber tudo dele, não me olha, quer apagar a luz.
 
Deixa...eu tenho medo do escuro.
 
 
 
(Junho/2007)

A grande aventura de João Pereira

 


 
Em Março, dia cinzento, pariu de cesariana: João Pereira vinha ao mundo.
Era um bebé sossegado, sem choro por birra ou fome, quieto no berço, empatado por uma roca a quem tinham tirado o poder de fazer barulho.
Teve as doenças normais para as crianças da sua idade, não fugiu à mão quando o levaram à escola pela primeira vez. Nunca houve queixas dos professores e também nunca conseguiu tirar uma nota para além do suficiente mais, o que deu à justa para cumprir o curso comercial que o seu pai lhe disse que teria que fazer.
Já tinha dado o nome para a tropa mas os pés chatos haviam-no livrado do serviço militar.
Arranjou um emprego num escritório de contabilidade, com horário certo, sem sobressaltos financeiros ao final do mês o que lhe permitiu reunir um magro pé-de-meia: João Pereira não era dado a devaneios da imaginação nem apetências por qualquer vício, ía e vinha de autocarro marcados num horário rígido, usava as mesmas roupas até estarem puídas e a moda era mesmo isso, uma moda.
Os pais apresentaram-lhe uma prima afastada, da província, com quem iniciou namoro por carta mas ao fim de um ano o compromisso quebrou-se, que a moça dera o salto com um homem casado para França e nunca mais ninguém soube deles. Mostrou-se pesaroso pelo abandono durante um tempo de resguardo, rapidamente esquecido quando entabulou conversa de ocasião com uma passageira do seu autocarro.
Ao fim de umas semanas convidou-a para tomar café e informá-la da seriedade das suas intenções, querendo conhecer a família dela. Noivaram por um ano e casaram. Ficaram um tempo a morar em casa dos pais de João, sem discussão ou diferendos, que ela era dócil e acatada nos dizeres dos sogros.
Mudaram-se então para habitação própria, próxima dos familiares, para que as visitas de Domingo ao almoço fossem facilitadas.
João Pereira engasgou-se com o fumo do charuto oferecido pelos colegas no dia do nascimento do seu primeiro filho, a quem decidiram chamar João. Ao fim de dois anos apareceu uma menina e declararam que a “fábrica” tinha fechado.
Tudo corria certo: Foi promovido pela antiguidade da casa e por nunca ter faltado, sendo considerado um empregado exemplar; nas férias faziam uma semana nas termas, que a esposa no último parto havia engordado mais de 20kgs e nunca mais recuperara a silhueta de solteira.
Os anos desfiavam-se num igual de horários, no cumprimento do dever ao trabalho, das obrigações fiscais, no pagamento das prestações do carro e da casa, na sua função de marido ao sábado à noite.
O filho João cresceu e casou, repetindo os passos dos progenitores.
Aos 23 anos de casados, João Pereira arranjou uma amante espanhola alta e magra, maquilhada e perfumada que lhe revelou os prazeres da carne sem a obrigação do compromisso social mas a quem no entanto, gostava de agradar, pelo que sempre lhe levava meia dúzia de pastéis de nata no encontro mensal que tinham.
Foi a vez da filha casar e sair da alçada da família Pereira.
Achou-se João e a mulher sozinhos na casa e na relação: pouco havia para dizer pois pouco havia de emoção vivida.
Partiu a mãe, e João viu-se na obrigação de recolher o pai Pereira, instalando-o no antigo quarto que fora da filha e entregue aos cuidados de sua esposa que cada vez mais gorda, menos se mexia.
Partiu também a espanhola, para uma morte fulminante em plena actividade profissional nos braços de um outro amante, facto que pela primeira vez na vida, trouxe a João Pereira algumas noites de insónia não tanto pela falta dos prazeres do sexo mas mais pela preocupação que o pudessem ligar àquela castelhana de conduta duvidosa. Mas o tempo passou e aos poucos a tranquilidade regressou à sua vidinha rotineira.
Fez um funeral condigno ao pai quando este se foi, para grande alívio da esposa, cada vez maior.
Mas a vida é mesmo assim e se a casa de João Pereira num dia se vazava no seguinte enchia-se: vieram os netos em correria, desafiar a paciência da avó e a pouca mobilidade que esta tinha, puxaram as calças e a atenção de João Pereira fazendo perguntas às quais ele não sabia responder.
Cresceram os netos e o silêncio voltou.
Reformou-se.
Por esta altura tinha o carro completamente pago e não tinha nos seus horizontes adquirir mais nenhum, que este estimado, ainda duraria mais uns dez anos ou pelo menos até ele deixar por completo de conduzir.
A casa onde moravam tinha o empréstimo bancário satisfeito há mais de um ano.
Ao fim de seis meses em chinelos, completamente perdido da rotina de tantos anos, sentiu uma dor forte no coração e depois de esperar bastante foi-lhe diagnosticado pelo médico de família uma angina de peito.
Passou a comer de tudo com peso, conta e medida ou seja, muito pouco, pouca diversidade e muito desânimo.
Ficou viúvo e um enorme vazio tomou a casa, não só pela saudade como pela abundância de espaço que a esposa ocupava.
Os dias cada vez maiores e as noites cada vez mais longas arrancavam-lhe suspiros profundos e uma letargia que quando nela pensava, não encontrava a sua origem. Chegou mesmo a sentir tristeza e tão pouco sabia porquê já que nunca tinha sido infeliz.
Pensou até e mais do que uma vez que a vida tinha sido generosa com ele.Tentou passar o filme da sua existência e achar uma coisa mal feita, um engano seu, um sobressalto…mas nada. Era uma folha limpa.
Tão limpa e imaculada que nela encontrou a grande falta da sua vida.
E foi precisamente no dia em que descobriu esse segredo, que morreu.
 
9 Fevereiro 2006