O concerto

 




Mal entrou sentiu o ferimento das luzes artificiais nos olhos e a pancada de calor contra o casaco no peito a colar-se-lhe. O passeio a pé desde casa até ao teatro soubera-lhe bem, estava fresco, trauteara alguns trechos que conhecía da autoria dos compositores que iría agora escutar, um serão planeado com antecedência, decerto casa esgotada, sentía que o fim-de-semana começara bem.
 
Deu alguns passos, usou o programa para se abanar disfarçadamente, observou as gentes no átrio, o seu comportamento, reprovou intimamente um pequeno grupo que falava alto e as senhoras trajavam de longo, nos braços ramos de flores, rosas brancas notou. Procurou no programa pelo nome de alguma solista que lhe tivesse escapado, mas não, não havíam solistas nem outras figuras de destaque, para quê as rosas brancas, os vestidos de cetim até aos pés se não é noite de estreia.
O pequeno grupo ría muito e muito alto, com a cabeça para trás, falavam uma língua estrangeira com muitos menhês e proquenhês e ele não entendía outros sons que não fossem esses, que raio, pensou.
 
Abriram-se as portas, ele esqueceu o grupo, entregou o seu orgulhoso bilhete e foi levado ao seu lugar: Fila B, lugar 12. Mesmo no meio e à frente.
Conseguía escutar os músicos a aquecerem os instrumentos, aquele zumbido caracteristico das cordas a serem dedilhadas, afiadas pelo arco e esticadas em sons altos e baixos criando uma espécie de cacofonia.
Olhou o relógio, estavam atrasados vinte minutos, desligou o telemóvel, não tinha mensagens, acomodou o traseiro no fofo da poltrona e traçou os pés preparado para receber aquele banho espiritual.
 
O primeiro músico a entrar foi o contrabaixo.
E na fila atrás da sua o grupo barulhento que na meia-claridade apalpava os assentos, tropeçava nos vestidos e rangía o celofane do embrulho das flores. Escutou-se um shiu pela sala à medida que os restantes músicos entravam em palco e a platéia batía palmas. Ele irritado rodou a cabeça e fez cara feia mas a única coisa que recebeu foi um joelhada na orelha direita de uma das senhoras que prontamente lhe apresentou um proquenhês repetidamente.
 
O maestro apareceu todo de cinzento e de braços abertos curvando-se ligeiramente, mais uma ovação.
 
O concerto começou.
 
Joly Braga Santos abriu a noite. Algumas tosses veladas pontuavam a sala, depois o toque insistente de um telemóvel que ficara esquecido num bolso, mas o que o perturbava mesmo era o constante barulhinho nas suas costas, sussurrado, entrecortado pelo ruído plástico dos ramos de flores a serem tocados e de quando em quando um estremeção, uma espécie de chuto que recebía no encosto do seu lugar e lhe disparava o coração e a concentração.
O maestro tinha uma risca de suor que lhe escurecía a gola e a costura do meio da casaca dando um efeito borboleta, e à medida que conduzía a orquestra aguardava-se que levantasse voo a qualquer instante, o que mais burburinho e ânimo decerto suscitou na fila C pois as palmas arderam a par com os Brrrravos muito arrastados e martelados nos erres. Ele nem aplaudiu, sentia-se esmagado. E ao observar o maestro a dirigir um olhar de agradecimento muito especial às senhoras atrás de si no gesto largo da mão e na vénia dobradissima exibindo o lustro da calva, tudo lhe pareceu claro: Eram todos do mesmo sitio, estava visto.
 
Procurou o programa, correu as letras com a ponta do dedo na busca do nome do maestro mas a pouca luz não lhe trouxe nenhum esclarecimento. A partir daí, já não conseguía ouvir mais nada, tudo lhe era desafinado e terrível. Pensou em saír mas o segundo compositor estava ao rubro e a platéia parecía completamente concentrada na sua figura. Levantar-se, recortar-se no contra-luz do palco era o mesmo que humilhar-se, sería o mesmo que desrespeitar toda a orquestra.
 
Afundou-se no assento. O estomago rugiu-lhe. O jantar leve a pensar na ceia após o concerto e depois a caminhada, já se tinha ido. Pensava em Mozart e em pão com manteiga, num requiem e em largas fatias de pão alentejano com lascas de manteiga.
 
Tchaikovsky enchía a sala e por essa altura o ar condicionado foi ligado ao máximo. Sentía frio. Desejava desesperadamente pelo intervalo para partir e esquecer tão malfadada noite. Mas as peças parecíam intermináveis e o desejo de pão com manteiga um crescendo que lhe trouxe água na boca, inquietação e ansiedade dificeis de suportar.
 
Farto do desassossego atrás de si virou-se e de dedo esticado fez o sinal de silêncio acompanhado de um sht curto mas sonoro.
A fila atrás de si ergueu-se de uma só vez.
Ele agachou-se e protegeu a cabeça.
A ovação fez-se sentir, os bravos replicados, toda a sala de pé, encore pedíam, os músicos de pé igualmente, o maestro como Cristo-Rei, os estrangeiros junto ao palco a entregar os ramos, as mãos juntas numa adoração.
 
As luzes acenderam-se, a sala vazou.
 
Vieram buscá-lo e perguntaram se se sentía bem. Um pouco fraco disse, a limpar a testa. Levaram-no até à cozinha do restaurante, serviram-lhe chá para a indisposição. Ele pediu um pouco de pão para acompanhar, se não fosse muito trabalho. De todo. Pão com manteiga, se faz favor.
 
 
 

Do outro lado é o mar

 
 



Às sete atrasadas saía e batía com a porta escapada da mão, carcaça mordida na boca, camisa desabotoada, gravata no bolso. Era sempre a descer e a escorregar até encontrar o outro que nos mesmos preparos e de cigarro nos beiços o espreitava das águas furtadas, de tronco a furar a pequena janela, quando a esquina se dobrava para mais uma descida íngreme em pequenos degraus polidos até se desprender em rua de cubos graniticos habituados à guarda montada.
O corte do assobio e a resposta, códigos.
As quatro pernas corríam desalmadas, as camisas como velas enfunadas e protegidas pelas laterais dos casacos, os sapatos ritmados no som ecoado do silêncio batido no solo e que desperta o inicio do dia.
Suados, vermelhos, ajeitaram calças e genitais, penduraram gravatas, alisaram a popa da moda, sentiram as moedas chocalhadas na poupança da corrida. Sábado havería lanche.
Entraram no barco, galgaram o lance de escadas, puseram-se à ré e ao fresco pendurados no varandim circundante, cumprimentaram o Mestre.
Na concha da mão protegeram o lume do fósforo e no consolo, expeliram fumo pelas ventas, olhos fechados, a mão a vaguear pelo rosto mal barbeado, o som do coração a escutar-se maior que as bombas do barco e todo aquele lençol de água a pedir companhia, um leito imenso.
- Ali é o mar.
- Onde?
- Ali.
- Um dia hei-de ir por ali, não hei-de vir a correr como um doido para me enfiar num barquito como este e só chegar aquele lado.
- Mas ali é o mar! E tu sabes bem o que isso é.
- Não falo desse mar, falo de outro.
- Pois eu falo do mar que leva os homens, falo da guerra, falo que quando voltam, quase sempre veem deitados e eu quero continuar a correr!
- Eu não. Eu quero ir por aquele mar que me há-de levar para um sitio diferente, quente, bonito, onde não tenha que correr nem usar gravata, nem morar num sitio onde tenho de andar dobrado.
- Pois sim, estou a ver que tens medo de perder comigo!
- Vai uma aposta?
- O que é que vale?
- O mar.
- Não, isso não.
- És um medroso. Do outro lado é o mar.
- Do outro lado do quê? Da nossa vida?
- Do nosso sonho.
- Não quero falar mais sobre estas coisas. Já chegámos.
- Encontramo-nos no regresso, até.
Na volta as sete eram esticadas em paragens de passos de tango, dois à frente rápidos, um lento, afasta à esquerda, gargalhada, repetição.
Mas só o ruído das sombras despegadas pelas solas no escorrer da penumbra, recordava o ciclo dos dias para quebrar a excepção dos anos. Houve tosse puxada para inicio de conversa. Medo também. E principalmente a vontade de não haver lugar para dizer fosse o que fosse.
- Não digas.
- Não disse nada.
- Não digas que me vais dizer que te vais embora.
- Não vou. Vou à procura do mar. Depois volto.
- Já disseste e eu pedi para não dizeres!
- Mas que dificil é falar contigo! Porque não vens comigo?!
- Porque eu não sou como tu. Eu tenho o rio.
- Eu preciso do mar, só assim saberei ver o rio.