De nenúfar em nenúfar

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Fechou a porta. Deu duas voltas à chave.
Mesmo que voltasse a saír e de novo a entrar, sempre rodaría a chave por duas vezes, trancando-se,
certificando-se de estar seguro no seu mundo,
inviolável a qualquer tentativa de pisarem no seu espaço.

Ligou a televisão e deixou o noticiário encher a sala de acidentes rodoviários, de derrocadas, de
fogos e raptos e derrotas de clubes.
Ele fora-se: o banho a tomar era-o de véspera, com tempo, sem alarme de corridas e atrasos incontroláveis. Amanhã só a barba a desfazer.
De pijama riscado embebeu uma carcaça murcha que trouxera de sobejo do almoço numa caneca de leite amornado. Não lavou os dentes de seguida: o gostinho macio perdoava-lhe a solidão.
Sentiu ruído no patamar e apontou o olho direito ao ralo mágico que lhe dava uma vista panorâmica.
Ficou por uns segundos empoleirado num pé e depois no outro, até sentir a vista a arder. A luz do patamar extinguiu-se e ele voltou à sala, ao sofá, ao ecrã colorido e agora sem som.

E depois, num berro imprevisto o toque da campainha de porta. Ficou paralisado. Mudo. Susteve a respiração.
De novo, a campainha, agora um dedo teimoso calcando de seguida, logo acompanhado de uma pancada seca na madeira da porta.
Levantou-se e em bicos dos pés descalços ponteou até ao olho mágico.
A campainha.
Perguntou de dentro quem é, pois sabía que do outro lado tinham ouvido o baque do seu coração.
Não escutou resposta, espreitou de novo mas o dedo da campainha tinha deslizado para o ralo impedindo-o de toda e qualquer imagem.
Repetiu a pergunta enquanto ía rodando lento as duas voltas da chave. Entreabriu a porta e antes mesmo de desvendar um rosto, uma gargalhada foi-lhe atirada à cara. Não teve tempo de falar que a mulher pôs-se de imediato junto a ele. Falava, falava de seguida sem precisar de fazer pausas para tomar ar, dar a deixa, esperar o retorno. Ele já não escutava, só admirava o contorno da figura, os dentes muito brancos, as mãos que se movimentavam à mesma velocidade das palavras expelidas.
Ela depois deu-lhe um abraço, alçou a perna para trás como a tomar balanço para lhe alcançar o pescoço e saíu.

Ele fechou a porta.
Retomou o lugar no divã tentando recordar o que ela dissera, quem ela era, ao que viera, mas não conseguía lembrar nada. Só a boca e os dentes brancos e as mãos a desenharem imagens no ar. E a gargalhada.
Olhou o ecrã e viu um sapo viscoso e brilhante, que inchava o papo. O sapo saltava de nenufar em nenufar e voltava a dilatar a garganta como se insuflasse um balão.
E aquela imagem de um ser que lhe parecía repelente e demais ridiculo como se sofresse de bócio, contrastava na fealdade com a beleza e exotismo daquelas folhas verdes espalmadas que parecíam tão dispostas a recebê-lo. As flores que emergiam das águas cambiavam entre rosa-pálido e um fucsia exacerbado e na verdade, parecíam combinar na perfeição com o batráquio.
Achou-se semelhante na sua vidinha de regra aos movimentos repetidos do animalzinho...

Adormeceu profundamente, mal acomodado no sofá da sala.
Esqueceu-se de dar duas voltas à chave.

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(Maio/2007)