Caminhos de cortiça













Ainda noite escura saltou da cama partilhada com a irmã América e chegou um fósforo ao candeeiro de petróleo.
Na cozinha aqueceu um púcaro de esmalte cheio de café feito de véspera. Lavou-se com gestos rápidos como a afastar o sono que envolvía toda a casa.
Estava atrasada como todos os dias.
Enquanto vestía a bata, uniforme da fábrica, ía beberricando o café quente e a ensopar um bocado de pão escuro a acompanhar os figos de piteira. Lá para os meados de Setembro comería uvas, mais adiante laranjas roubadas das terras da Costa e finalmente azeitona, com os frios rigorosos.
Foi abanar Polónia que dormía junto com a mãe, avisando que era tarde, que se despachasse que íam chegar atrasadas.
Agarrou nos sapatos e guardou-os dentro de um saco de pano, que também transportava os restos que havíam sido do jantar e que lhe serviríam ao meio-dia.
Chamou de novo a irmã e como esta lenta se demorasse a acordar para a vida, preparou-lhe uma saca igual à dela.
Foi para o quintal atirar as cascas dos figos às galinhas.
Apareceu América em camisa de noite, espreguiçando-se e olhando o céu estrelado.
- A que horas pegas hoje?
- Hoje só entro às nove. Estamos à espera do mecânico para consertar a máquina... nem quero pensar... se aquilo se avaría de vez, Normandia! Não posso ficar sem trabalho, mulher!
- Vai tudo arranjar-se, América. Volta para a cama, não vá a mãe acordar. Mas essa Polónia não aparece?! Olha ! Eu vou indo! Diz-lhe que vou indo, senão chegamos as duas atrasadas! Até logo!
Desapareceu num passo rápido, marcado, os chinelos gastos a levantarem poeira nos calcanhares, o caminho guiado pelas estrelas faíscantes, as asas das cigarras a esfregarem num ruído contínuo, alguns grilos a acompanharem a cantoria.
-Normandia! Normandia, espera mana! Não corras, espera por mim! - sussurrava a arfar, as alpercatas como castanholas a estalarem, alternando corridinhas rápidas com passos largos.
Normandia nem olhou para trás, que já lhe conhecía os hábitos. Esticou o braço e passou-lhe o saco e depois, as duas de braço dado, marcaram o ritmo, acelerando, que até à fábrica eram 8 kms a corta-mato por azinhagas e quintas.
De um par passaram a cinco, depois mais os manos Botas, mais adiante, uam rapariga e quando chegaram à vila o grupo crescera até à dúzia. Mas na verdade, o que parecía era uma procissão, pois quase toda a gente da vila da Cova e arredores, trabalhava na Ranking&Sons, a fábrica de cortiça, ou como todos lhe chamavam simplesmente, a fábrica.
Ouviu-se um apito longo e estridente: Normandia e Polónia desataram a correr em direcção aos portões gigantescos pintados de verde, seguidas por uma multidão que se empurrava para entrar em primeiro. Era um mar de gente a chegar, a perfurar o cartão amarelo de ponto e a dirigir-se aos vários sectores que trabalhavam a casca do sobreiro.
As irmãs trocaram os chinelos pelo calçado guardado nas sacas de pano.
Normandia era da "escolha": tinha uns olhos bons, rápidos e vivos que lhe permitiam distinguir entre uma boa rolha e uma defeituosa.
Polónia nicava: era um serviço de minúcia, aparar os excessos à volta da rolha cilindrica, macia e quente ao toque.
América tinha um serviço distinto: os seus braços musculados e a sua estatura elevada fazíam dela a única mulher a laborar num sector exclusivamente masculino, operando pesadas máquinas de corte ainda na casca enrolada e rugosa. E por isso, ganhava como os homens, muito mais do que as suas duas irmãs e demais mulheres.
As três sustentavam a mãe e a casa, que o pai finara-se ainda elas garotas, num desastre de carroça atropelada por uma camioneta de carreira. Foi-se o homem da casa e o animal, que teve de ser abatido. E até Polónia ter dezasseis anos e ir para a fábrica, a mãe foi o único suporte a lavar e a engomar para fora. Aos quinze Normandia fez uma permanente no cabelo louro e apresentou-se à admissão da fábrica, muito mulher, muito madura e como ninguém confirmava nada aceitaram-na tendo como bons os seus 18 anos. No ano seguinte foi América e o corpo desenvolvido foi o seu melhor bilhete de identidade.
As irmãs com a diferença de um ano e meio entre elas acharam que estava na altura da mãe descansar.
Eram conhecidas por todo o pessoal da fábrica por causa dos nomes de países que tinham. Polónia explicava que o pai depois de ter aprendido a ler, recebera do seu professor um atlas geográfico e agradecido ao seu mestre, prometera-lhe que um dia, os seus filhos haveríam de ter os nomes das terras que ali aparecíam.
Cumprira a promessa e as filhas honravam-lhe a palavra.
Trabalhavam de segunda a sábado, numa repetição de gestos cansados, caminhadas rasgando a escuridão, o frio e as chuvadas, a canícula e a poeira.
Não se questionavam, a vida era assim.
E das três, Normandia destacava-se pelos seus olhos ora azuis ora verdes e um cabelo louro que tinha trazido, dizía-lhe a mãe, de um tio que viera gazeado pela mostarda da 1ª Grande Guerra. Mas a voz era o seu estandarte, pois cantava e trinava que até o barulho das máquinas se apagava sumido de tanta paixão.


O encarregado do sector da "escolha", galego de origem "xamaba"-lhe "Normanda, Normanda!" e ameaçava "quedar lo xonido!" mas passado algum tempo Paco Feixó embevecía-se no canto e deixava a produção seguir, calado, que a admirava.
Normandia troçava dele e piscava-lhe o olho camaleão, para logo num gesto fingido mostrar um falso medo ao pingalim que sempre aquecía a mão do galego.
O mulherio ría e ao almoço passava palavra da façanha da "Normanda".
A vida seguía sem sobressaltos, sem alterações, só as estações dos anos a mudarem.
Um dia apareceu na cantina um homem que falava baixo com os outros e entregava papéis de letras negras. Alguns operários evitavam-no, Normandia e Polónia curiosas, chegaram-se.
- Camarada! Podes aproveitar a tua boa voz e os ouvidos que te escutam para passar a palavra que nos pode libertar!
Polónia assustou-se e deu um esticão à irmã para que saíssem dali. Mas Normandia inquiriu-o de imediato donde ele a conhecía e como sabía que ela cantava bem.
- Cantar? Que cantar?! Cantar só quando for o dia da vitória! Agora é tempo de luta! Olha, toma estes panfletos e distribui entre os camaradas do teu sector! - e saíu às pressas largando-lhe os papéis entalados na mão surpresa.
O apito levou-a até ao período da tarde e aos milhares de rolhas a rebolarem até aos seus olhos apurados, os papéis amachucados no bolso da bata.
No resto do dia cantou fados, não soube bem porquê.
Paco Feixó admoestou-a uma só vez e deixou a voz voar para quem a quisesse ouvir.
Mas desde esse dia não saíu mais de perto dela.
E o homem misterioso não voltou a aparecer.
Algumas semanas depois, após ter pedido autorização para ir à casa de banho Normandia deu com os papéis esquecidos dentro do bolso do uniforme. Pela 1ª vez leu-os. E deixou-os pendurados no prego recurvado que suportava quadrados de jornal que davam serventía à limpeza do fisico.
E um par de dias após, o apito da fábrica soou antes do meio-dia e todos acorreram ao pátio pensando que ficaríam sem trabalho por causa de algum incêndio que acabaría com a Ranking&Sons.
Os encarregados de cada sector mandaram perfilar os seus operários: eram um mar de gentes sem ondas, sem movimento.
Dois homens de fato negro nunca vistos, aproximaram-se da multidão e aos berros comunicaram que "aqui ninguém faz comicios! Ninguém faz greve! Ou vai tudo para a gaiola!" e distribuíndo os panfletos de letra negra pelos encarregados fizeram-nos desfilar diante dos narizes dos homens e depois das mulheres, perguntando quem tinha entregue aquele papel.
O sol queimava a pino.
Ouviu-se um barulho e um homem caído no chão foi de imediato arrastado pelas covas dos braços pelos homens de fato, desenhando na gravilha escura, dois riscos ondulados marcados pelas biqueiras das botas, como se dois riachos agora se desusnissem do mar grande.
Normandia procurou com o olhar Polónia e América mas não conseguiu descobri-las. Só encontrou os olhos negros do galego Feixó e do pingalim nervoso, agitado atrás das costas.
Os homens de fato escuro insistiram nas perguntas e parecíam não ter pressa no tempo. Uma mulher chorou. Depois ajoelhou-se e pediu perdão. Os homens trouxeram-na para perto do desmaiado.
E como se nada mais se passasse, abriram-se os gigantescos portões verdes e entrou a guarda a cavalo.
O mar agitou-se numa vaga, barulhento: rolos de pó dos cascos dos animais entupíam a visão e a garganta já ressequida de tanto sol, corridas desenfreadas de sapatos e chinelos perdidos, bonés que voaram dos guardas montados foram espezinhados e o silvo dos chicotes a cortarem o ar só foi abafado quando se ouviu um tiro.
Paco Feixó agarrou a mão de Normandia e puxou-a para debaixo de um camião carregado de casca de sobreiro. Ela temeu: Primeiro que a vergastasse depois que fizesse a denuncia. Mas ele só a olhou e baixo quase a soletrar "Normanda, Normanda, que fostes faxer... que no te poxo acudir..."
Viram as patas do cavalo parado junto ao rodado do esconderijo improvisado e a ordem foi para saírem.
O galego assomou ao sol fechando um olho à claridade violenta. O pingalim esquecera-o junto a Normandia. Sentiu um golpe quente a arder-lhe no pescoço e de imediato o espirro de sangue a sujar a barriga do cavalo e as botas engraxadas do guarda. Levou as mãos ao golpe desferido pelo grito do chicote e num berro atirou "Coño!". Ainda sentiu mais uma e ainda uma outra dentada do chicote mas deixara de ver nitido e caíu nos joelhos.
Vieram os homens de fato negro, um deles evitando a bosta quente que o cavalo esporado não conseguira aguentar. À vez foram oferecendo impropérios e pontapés, o Feixó devolvendo enrolado humilhações em galego.
E de repente tudo parou.
Só uma voz clara, limpida, desfiando notas como flores, projectando sons que deixaram nervosas as montadas, os seus cavaleiros sem mão à rédea, os homens de fato a rodarem e abanarem a cabeça na busca da origem da musica.
Normandia saíu do esconderijo e avançando cantava em direcção aos rostos estupefactos dos dois estranhos.
E era tal o poder daquela garganta que eles já aflitos levaram as mãos às orelhas protegendo a vibração dos tímpanos que lhes fazía tremer a cabeça, o peito a estourar.
Os irmãos Botas apareceram de mão dada a fazer coro e depois América e Polónia e ainda mais e muitos mais e todos juntos como um troar da vaga que se despenca na praia, correram com a guarda montada que caíra em pinote dos cavalos e fizeram sangrar os ouvidos dos homens de fato escuro.
Talvez se tivessem usado umas rolhas de cortiça...




(Janeiro/2007)

3 comentários:

o Reverso disse...

muito forte.

personagens e factos muito bem desenhados.

de uma época que, julgo, não conheceste.

Vicktor Reis disse...

Querida Gasolina
Este conto é um magnífico desenho da nossa terra querida. As três operárias corticeiras bem podiam residir na Charneca donde fariam a caminhada diária na procura de trabalho lá para os lados da Cova.
Este conto é um contributo muito importante para que as gerações pós glorioso 25 de Abril se possam aperceber do sofrimento de uma época que todos deveríamos desejar que não volte.
Sinto sempre que te leio que já cruzamos nossos passos nestas veredas da margem sul do belo rio Tejo.
Beijinhos.

SONY disse...

Ai minha Gas realmente o que é bom nunca se esquece :-)
Mal li as primeiras palavras lembrei logo do tempo que o postaste no blog que me comecei a apaixonar pela tua escrita :-)
Obrigada por recordares as irmãs...

Beijo,
Sony