A inundação

 

 
 
 
Ainda de olhos fechados, cabeça comprimida no conforto da almofada o sentido auditivo fez soar um alarme, fraco, que o sono era muito e talvez sonhasse. Mas permanecia aquele ruidozinho idêntico à chuva, incomodativo, constante que não deixava aquietar-se. Num rompante atirou a coberta para trás e apalpando o escuro da noite foi-se levando pelo instinto, de mão esticada para as esquinas da casa e das portas entreabertas de encontro ao som cada vez mais perceptível de água a cair.
Mas antes de compreender o que se passava, sentiu um frio nos pés descalços apenas aconchegados pelo amontoado das calças do pijama riscado descaídas da cintura: o chão brilhava no breu.
Entrou de rompante na casa de banho e aí, percebeu que havia água no chão. De quanta altura, perguntou-se imediatamente, agitando a mão na busca do interruptor para que rápido se fizesse luz às suas interrogações. E mal deu com o pequeno botão que fazia dia na escuridão sentiu uma mordidela nos dedos que lhe devoraram igualmente o braço, acompanhado de um clarão azul e um ruído rápido e violento semelhante à electrocussão de uma mosca. Abanou o braço e ajeitou-o ao peito, proferindo exclamação tão expressiva como o esticão que acabara de tomar.
Agora os olhos dimensionados ao escuro apercebiam o brilho das torneiras, o som de cascata despenhando de um alto que não atingia. Arrastou os pés pelo riacho que corria vivo corredor fora, sala dentro, embebia os tapetes turcos comprados em segunda mão, experimentando em cada interruptor a força da electricidade combinada com o elemento líquido. Uma vela perfumada a canela que enfeitava uma mesa de canto foi o único archote que conseguiu alumiar, deparando-se com um Titanic prestes a afundar.
Perdido sem saber o que fazer primeiro, se fechar a água, desligar o quadro eléctrico ou gritar por socorro, arrastava os almofadões e alguns livros que haviam sido esquecidos no chão, encostando-os ao tronco, tropeçando nas calças de pijama que atrapalhadas lhe pesavam sobre os peitos dos pés frios.
Procurou o telefone e não o encontrou mas sentiu-se satisfeito por ter achado um cigarro completamente seco que acendeu na vela perfumada de canela e que pingava fervorosa nas costas da mão uma estearina macia e adocicada.
Um pingo mais quente derramou entre dois dedos e a dor tão intensa obrigou-o a largar a vela que de imediato se apegou a um cortinado de nylon trazendo mais claridade à assoalhada. Foi em pânico que soprou a cortina mas num segundo o pano encarquilhou e atiçou-se à estante de pinho dobrada pelo peso dos livros adquiridos num alfarrabista seu conhecido. Num rasgo de  brilhantismo despiu as calças de pijama molhadas e combateu heroicamente o fogo empunhando como um gladiador, aquela arma riscada e mole. E era tal a sua determinação em fazer peito aquele fogaréu que na investida bateu com as canelas na madeira do sofá, fazendo-o tropeçar e estirar-se desamparado para a estante agora manchada a negro da labareda impiedosa.
Deve ter batido com a cabeça, pois perdeu os sentidos.
Quando recobrou estava na sua cama, a coberta tombada no chão, as calças de pijama riscado embrulhavam-se numa perna a outra desnuda, o candeeiro de presença habitualmente na mesinha de cabeceira jazia no chão e o colchão, apresentava uma mancha desoladora e molhada onde ele se aninhava com frio. O coração disparado latejava uma veia forte no pescoço e de imediato não conseguiu distinguir o som da água e o dos seus batimentos cardíacos.
Foi então que se apercebeu que a força da natureza tinha rompido o dique da bexiga a meio de tal pesadelo.
Levou as mãos ao rosto de barba por desfazer, riu-se e declinou um verbo vicentino em tempo reflexivo.
 
9 de Março de 2006