Zé Grande

 


Fechou os olhos e deixou-se ir, abraçada àquele torso vestido de negro e saias como ela. Lembrou-se que talvez fosse uma dádiva, um sinal lá do alto, a bendita, a escolhida, uma outra Maria. Abriu os olhos e viu a figura do Padre novo a afastar-se do seu corpo.
No dia seguinte, o velho Pároco Ramiro voltou, restabelecido das maleitas da psoríase, curado pela visita ao Vaticano.
O novo fora-se. Para todo o sempre.
Nasceu gordo como um bácoro.
A mãe esvaiu-se alagada nos sangues, no esforço de o parir e de implorar ao Criador que a mantivesse pura e casta. A parteira já com cinco para criar, condoeu-se da orfandade daquele bastardo e como boa cristã deu-lhe o peito ainfa farto do seu mais novo.
Ele deitou as mãos cerradas ao monte de carne e agarrou-se à vida.
Nada lhe faltara: Comida, parceiros de brincadeira, trabalho, pancada no lombo, um tecto, um pai e uma mãe. Nunca se inquietara a procurar a origem das suas diferenças: o nariz fino contrastava com o amontoado arrebitado do dos seus irmãos, o cabelo liso e negro destacava-se entre as cabeças cor de palha do resto da familia, mas o que mais se distinguía era a sua desmesurada corpulência e altura no meio dos corpos largos e atarracados do resto da prole.
Ficara Zé, de seu registo civil José Machado, por todos conhecido como Zé Grande.
E como os tempos eram duros, a lavoura o sustento e oito a comer, foi-lhe dado em destino o jus ao nome que ganhara: não havía árvore que o não temesse, lenhador que o ignorasse como valente a manejar a ferramenta e os seus dois metros de altura deram-lhe a lenda de ter sido gerado pela seiva de um eucalipto.
Gostava dessa história que ouvía de si.
Sempre tinha gostado de histórias, especialmente as que sua mãe contava. Também não conhecía outras, que a escola não o tinha merecido. Somava coisas por associação, por abate de troncos, por sobras de pinheiros. E bastava.
Não quería saber de quem o tinha deitado ao mundo, nem tão pouco como morrera: essa era uma história que já lhe havíam soprado mas que nenhum interesse lhe despertava. A sua familia eram os Machado e a sua vida cortar árvores.
Ía o Agosto perto do feriado e o calor apertava cada vez mais.
Aqui e ali chegavam noticias e fumo escuro de labaredas que comíam o verde. Bombeiros, só o nome lhe conhecíam que ali ninguém chegava nem quería saber. Era cada um por si a tratar das suas coisas e com a mão esticada ao Senhor Prior ao Domingo cobrindo o rebanho, tudo se salvaría.
Zé Grande, à soleira da porta falava para dentro, para a mesa onde já todos se havíam acomodado à ceia e onde ele não cabía. Tería que esperar que dois dos seus irmãos terminassem e lhe dessem a vez.
- Pai, com as festas tão perto e o lume a vir por aí, ninguém vai ligar!
O Pai mastigava e não respondía.
- Pai, tou cá com umas ideias...
O pai continuava a mastigar, olhou-o e arrotou.
- Pai, tou capaz amanhã de roçar aquele mato lá perto da Candosa...
O pai olhava o tecto ao vazar o copo de morangueiro.
- Pai, é que a Senhora vai passar pela Candosa e tenho cá um destes medos que se ateie ao manto... e depois vai tudo pró baile, ninguém quer saber senão da bailação!
- Vai lá Zé. Mas cuida que do nosso pedaço não fique restolho, que s'o demo s'apega! Nem sei! Nem sei rapaz! - E o pai tirou o boné com a mão direita e com essa mesma mão rapou na careca orlada de um tufo ruço.
Ergueu-se, espreguiçou-se e deitou abaixo os suspensórios. Recolheu-se aos fundos da casa.
Zé Grande, animado pelo consentimento do pai, saltou como uma mola e de empurrão enxotou dois dos manos, tomando o assento ainda quente do banco corrido.
O lugar do pai ficara vago.
Comeu numa pressa e pediu à mãe que lhe fizesse a cama. Quería dormir depressa para rápido chegar à serra e limpar o caminho por onde aquele andor coberto pelo azul celeste do manto da Senhora da Candosa havería de passar.
A mãe que o conhecía como um dos seus, pois que lhe havía dado do seu leite, esticou uma coberta no chão, e depois uma outra, que mesmo em Agosto, ele há noites de sereno.
Sorría para o seu Zé Grande. Entendía o que lhe ía na alma. E até já magicava numa história inventada sobre a Senhora a aparecer-lhe quando ele andasse no mato ruim. Zé Grande deitou-se nos panos: Não havía tamanho nem espaço de cama que comportasse um homem com dois metros.
Era escuro quando pegou no machado e na foice e se abalou serra acima.
Os olhos dominavam o breu e o barulho dos ralos indicava as bermas farfalhudas de fetos e amoras silvestres. Subía, subía sempre, uma e outra vez pisando o visco que soava a sapo chamando a fêmea. Quando atingiu o cume e a vista alcançou o coreto branco, as estrelas começaram a apagar-se e um fio amarelo riscou nos cabeços dos outros montes.
Tirou a camisa e atou-a à cintura.
Puxou atrás o braço direito armado da foice amolada e num silvo decepou o matagal seco e agreste.
Um pássaro largou como um eco as asas batidas em fuga.
E durante um tempo nenhum ruído se ouvía para além do aço implacável rasgando o ar até ao restolho teimoso que ficara de outros verões. Continuou sem cansaço algum até se deparar com um eucalipto magriço e esticado, bem no meio do rumo da procissão.
Primeiro atónito - que nunca vira ali aquela árvore - e depois desafiado na sua altura - um pouco acima do seu tamanho - largou a foice e de duas mãos pegou no machado, decidido a deitar abaixo aquele poste que se lhe metera ao caminho.
Mas quando dirigía o gume afiado ao tronco esbranquiçado do eucalipto, ouviu um grito e falhou o alvo.
Malfadada machadinha que lhe fugiu ao pé esquerdo e enterrou a lâmina no peito protegido pelo cabedal ensebado da bota. Mas fina do uso, escachou-se numa fenda e deixou o pé desarmado numa ferida esbeiçada.
Caiu por terra e naquele momento nada mais havía que o seu pé, todo ele era um pé, tudo na serra era a dor que sentía.
Agarrou-se ao seu ferimento, os dois metros enrolados como um bicho-de-conta, a garganta aberta para o grito que não saía. Rolou de um lado para o outro e por fim, com nitidez, o céu, já muito azul, uma bola amarela lá no alto. Ficou assim, as lágrimas a salgarem a terra, misturadas com sangue que se empapava nos torrões secos. Viu um rosto debruçado sobre o seu. Uma aura azul celeste emoldurava umas faces brancas e uma boca vermelha repetía senhor, senhor, senhor... Quando acordou estava suado nos panos que lhe servíam de cama. O pai passara perto na carroça do Manel da Rabina e estranhara o silêncio da serra. Deu com ele de olhos fixos no céu e comentou com o companheiro que era o diabo do Padre que havía voltado para o reclamar. Levaram-no de arrasto até à carroça e no meio de bostas para estrume e uma cesta de uva morangueira fizeram o transporte até casa. A mãe coseu-lhe o pé, um ponto cruzado como fazía nos buchos e nas mulheres que paríam. Revezaram-se todos até ele dar acordo de si. Ficou por três dias deitado mas só falava do trabalho inacabado, guardando para si o rosto celeste. Estava certo que era a Senhora da Candosa que o havía visitado. Mas nada dizía. Era véspera do feriado e à noite havía baile. Tudo se abalou à serra, rodearam o coreto para admirar os metais polidos e desafinados, espreitaram a quermesse, conversaram com o Padre. Zé Grande, manco mas feliz, arrastava o seu tamanho aos ressaltos. Deram-lhe uma cadeira perto da roda do baile para que não perdesse o espectáculo. O povo levantava os braços e os rolos de poeirada não incomodavam ninguém que os giros e as voltas eram a coisa mais apetecida desde o ano que passara e de infortúnio já bastava a míngua da vida e o que acontecera a Zé Grande. Foi no meio do folguedo que ele de novo a avistou. Soergueu-se mas ao impulso da sua vontade a dor no pé segurou-o. E o Padre também, que lhe deitou a mão à camisa branca de mangas muito curtas para aquele tamanho todo. - Onde pensas tu que vais? Compostura, meu rapaz! Que aquela menina é a filha do Governador e está aqui para se curar dos pulmões! Que nem te passe pela cabeça olhar para ela! Tu vê lá o que arranjas à tua familia e a nós todos! Que o Sr.Governador Civil tem sido muito amigo das gentes da Candosa! Que o Senhor o proteja por muitos e bons anos! - e elevava o indicador à testa e ao céu. Mas a menina doente dos pulmões não o estava dos olhos e era impossível não mirar obssessivamente aquele homem tão grande e tão pequeno como o vira enrolado no chão. Recordou o seu grito dias antes, ao vê-lo enorme a derrubar mato e a árvore onde acabara de fazer uma promessa, como lera num romance de amor às escondidas. E como depois sentira um medo a tomar-lhe o corpo quando vira tanto sangue e o homem parecía ter morrido. Fugira a bom correr, as faces afoguearam-se-lhe e a enfermeira que lhe perdera a trela serra abaixo ficara encantada com aquele rubor. E o seu pai, o Sr. Governador Civil também ficaría. Zé Grande continuava de pé. Olhavam um para o outro. Tudo à volta tinha desaparecido. Juntaram as mãos e dançaram. Os outros afastaram-se mas os acordes eram um veneno que lhes dava alegria e depressa esqueceram o par. Bailaram muito e Zé Grande sentía o pé a crescer, uma baba quente a arder pela perna acima. Levou-a até ao assento e murmurou que já voltaría. O barulho era muito, os risos ecoavam a serra e ela não conseguía ouvir as palavras dele. Zé Grande disparou serra baixo, uma correría feita a uma perna que tinha de poupar o pé aleijado. Já nem lhe doía. Só vía o rosto da menina, o manto azul celeste da Senhora da Candosa a enfeitá-la. Atirou com a porta de casa para trás. Ninguém. Descalçou o sapato e verteu o sangue que se havía acomodado numa pasta de terra. Não reconheceu o pé, nem tão pouco os pontos cruzados dados sabiamente pela mãe. Procurou a caixa de costura e enfiou a linha grossa e negra dos buchos na maior agulha que encontrou. Bebeu do medronho do pai, goladas fartas que lhe escorreram até ao peito e afastaram o cheiro de suor. Cerrou os dentes e enterrou a agulha com força, unindo as duas metades da carne, espremidas entre sangue e uns veios brancos que teimosamente queríam fugir ao ponto. Acabou por vazar a aguardente. Enrolou um pano ao pé e com força ajeitou o trambolho para dentro do sapato. Bateu a porta e correu serra acima. Não há árvore que o não tema nem lenhador que não lhe louve a coragem. O Zé Grande salvou a serra da Candosa, que no dia feriado apareceu um fogo que não passou de fogaréu e todos o combateram sem problemas. Graças à limpeza que o Zé Grande fizera dias antes. Todos lutaram contra o lume menos o  Grande que ficou retido em casa, doente e a delirar. Agora é coxo. Até dá piedade. É que naquela noite na véspera da procissão, e do fogo e do feriado, quando o Zé Grande atingiu de novo a serra, já a festa havía terminado. E a menina havía sido levada pelo Sr. Governador Civil. Para todo o sempre.
 
 
Janeiro 2007