A festa

.






Demasiadas tequillas e demasiados cigarros trouxeram-lhe uma náusea difícil de aguentar.
Sabía que em breve tudo iría verter e não quería de forma alguma que isso se transformasse num espectáculo gratuito e pasto para comentários dos colegas.
Detestava aquelas festinhas de empresa em que todos se pretendem amigos íntimos uns dos outros e no resto do ano se aturam porque nunca se sabe o que o futuro reserva.
Mas este ano tudo era menos suportável e as lágrimas que abafava ao apertar os olhos escorríam para dentro da garganta tornando a boca acre. Achou que melhor sería gritar a plenos pulmões e assim, de algum modo exorcizar a dor que a consumía por dentro e se vía por fora.
Os homens rondavam-na, cheirando uma embriaguês permissiva mas ela nem os vía.
Um único havía no mundo para si, ali tão perto, bastava esticar o braço e agarrá-lo como tantas vezes fizera...e agora tão inacessível, tão desconhecido, tão concorrido de mulheres berrantes que disputavam entre elas um osso como faz a matilha esfaimada.
Vagueou por entre aquela gente estridente, abrindo caminho à força de "com licença" e o vómito eminente.
Escancarou a porta dos lavabos femininos e de joelhos como numa prece, despejou sumo de limão, álcool e mágoas profundas. A maior delas a rejeição, deitada em golfadas que lhe parecíam arrastar a garganta e as vísceras para um fundo de buraco negro.
Ficou ali, encostada à parede, suada , suja, azeda e miserável.
De olhos fechados desabotoou-se e ficou de soutien branco à espera da calmaria do chão frio que não parava de se agitar.
Um filme a cores projectava-se a uma velocidade atroz que não conseguía acompanhar, entontecendo-a pelas imagens nas quais aparecía como personagem maior de um enredo para o qual não tinha estudado o papel a preceito.
Quem lhe mandou apaixonar-se?! O que pensara conseguir dominar havía-a manietado de pés e mãos.
...Pés e mãos atados era uma imagem que lhe desenhava um sorriso. Sentiu nos pulsos a seda da gravata dele, nos tornozelos finos as mãos de homem grande como umas grilhetas em contraste com a boca macia passeando na curva dos joelhos, as mordiscadelas nas coxas...a espera do movimento seguinte que nunca era o que quería, o que suspeitava que sería, deixando-a ainda mais ansiosa, mais cativada e prisioneira da surpresa.
O jogo da sedução é um jogo arriscado, pensava agora, triste.
Voltou a natureza a impôr a sua força e de novo de quatro, se vergou para dentro do sanitário. Já exausta do esforço, permaneceu naquela posição, recordando a sua vulnerabilidade nas mãos e no corpo daquele homem grande que a cobría toda como um animal em cio, sem pudores nem palavras.
E ela gostava de o sentir forte, pesando sobre as suas costas, amarrado com os braços a uma cintura delgada como os cabos de um navio se prendem ao cais de embarque depois de terem atravessado o mar alto e conseguido vencer a vaga espumosa e branca da crista.
Tentou levantar-se e retomar a postura mas tudo rodava à sua volta e não conseguía apertar a blusa por lhe parecer que havíam agora mais botões que casas para os enfiar. De gatas puxou pelo papel higiénico e limpou o queixo, os olhos esborratados da maquilhagem desfeita em lágrimas. Tudo lhe parecía turvo. Descarregou a água por diversas vezes e o cheiro de azêdo desvaneceu-se. Por isso, quando viu as pernas dele cobertas pelo fato italiano de executivo aproximarem-se de si achou que o delírio continuava para além das suas recordações. E era tudo tão forte que essa fronteira entre o sonho e o real parecía ter-se esvanecido, porque sentiu as mãos de homem grande no seu pescoço, depois por baixo dos braços erguendo-a e amparando-a contra o tórax almofadado de músculos duros e por fim um frio intenso de água na testa, nos pulsos, no peito.
Abriu demasiado os olhos para se certificar da verdade mas o odor daquele homem grande era o suficiente para ela o reconhecer no meio da multidão e seguir o seu rasto até ao fim do mundo. Ela tinha para sempre o cheiro e o sabor daquele homem dentro de si, como um orgão que lhe pertencesse.
Pendurou-se no pescoço dele e sossegou de imediato.
E ele continuou com o seu lenço perfumado e molhado naquela água tão fria a limpá-la daquele nojo ácido.
Súbito a água já não lhe parecía tão gelada e quando ele roçou os seios dela e ambos sentiram calor, ele largou a sua tarefa e acariciou-a por cima do soutien branco, por baixo da saia travada, na curva quente dos joelhos. Ela deixou-se ir como plasticina que se molda, com o ruído ao fundo de gargalhadas de homens e mulheres, tilintar de copos e garrafas e alguém a bater à porta dos lavabos femininos.
Ignoraram as insistências do "está aí alguém?".
Ele procurou o lavatório e sentou-a aí afastando as pernas e a cueca de renda branca, entrando sem pedir licença. Ela abraçou-o com os braços e as pernas e cada batida na porta era o ritmo certo para os dois.
O lavatório rangeu, ele cedeu e ela um pouco depois.
Abotoou-lhe a blusa e desceu-lhe a saia, compôs-lhe o cabelo e transportou-a ao colo até ao tampo da sanita.
Deixou-lhe o seu lenço molhado na mão triste e abandonada e saíu destrancando a porta.
Ela estava agora completamente lúcida e sentía que era tempo de regressar a casa, pois a festa tinha terminado.
.

(Agosto/2005)

2 comentários:

marisa disse...

Que dizer? Supremo!
marisa

o Reverso disse...

. .. ...