A viagem

 


Alguns minutos depois das 18 o cais de embarque da estação do metro ecoava um burburinho idêntico ao de um enxame pronto a atacar. O som desapareceu por completo abafado pela chegada metálica do transporte. A multidão ultrapassou o limite da linha amarela e colou-se em magote às portas dificultando a saída dos que pretendiam o sentido inverso. Acomodaram-se colados, os corpos encostados aos safanões, cotovelos contra estômagos, sovacos a esfregarem em testas, calcanhares sobre dedos de pés encolhidos. O apito da porta intermitou sem aviso e os corpos encolheram-se ainda mais. Soou novamente. O calor e o odor aumentavam a uma escala progressiva e rápida, um e outro ocupante sopravam na falta de ar fresco, hálitos insustentáveis em direcções incontroláveis. Mais um apito, uma eternidade e por fim a lentidão das portas a unirem-se.
 
Ela chegou a pensar que corría.
Um dia havía corrido muito e bem, ágil, uma passada larga quase mal pousada no bico dos pés a tocarem o chão que lhe dava uma velocidade e impulsão de ganho de terreno. Hoje não. Por mais que achasse que o fazía não havía meio de chegar às portas do metro que parecíam cada vez mais distante e a cerrarem-se.
Gritou esperem e ajudou ao pedido com a malinha de mão a agitar-se, faltava-lhe o ar, a força no braço, nas pernas que não chegavam lá e talvez não a tivessem visto nem ouvido que ninguém se moveu daquelas posições de estátua. Mas chegou. Por uma nesga de porta que se colou numa borracha preta e lhe entalou a bainha do casaco.
 
Ficou de frente para aquela multidão. A cabeça encostada aos vidros que vibravam, sem se conseguir mexer, presa na roupa, presa na respiração, presa nos olhos de um rapaz que a fixava longamente como se lhe sorrisse. O coração aquietou-se-lhe e ela sorriu.
 
Na estação seguinte as portas abriram-se e ela não teve tempo de se segurar, sentiu-se desamparada, tonta, um vácuo debaixo de si, um alçapão que se abría para a engolir e levar de vez como um inferno estudado na catequese a consumir o pecador em dia de juízo final, caíu-lhe a malinha de mão e foi empurrada por uma onda de pessoas que a atiraram para o fundo da carruagem sem ter tempo de andar pelo seu pé. Levou a mão aos olhos e encontrado o tino abriu-os, achando de novo o olhar do rapaz a sorrir-lhe e a esticar-lhe a sua malinha de mão.
 
Agradeceu-lhe. Ele segurou-a pelo cotovelo e levou-a até um assento, obrigando quem fingía dormir, acordar no momento. Ela voltou a agradecer, ele ficou de pé junto a ela.
De quando em vez olhavam-se. Sérios. Sem nada dizerem. Sem intenção de falar ou esboço de sorriso a desenhar-lhes uma curva nos lábios, apenas olhos nos olhos a vigiar um silêncio tempestuoso da alma, sem perguntas.
Não eram olhares ternos e condescentes de um jovem que zela pela segurança de uma mulher idosa, nem dela agradecimentos carinhosos que se possam suspeitar para com um neto.
Eram apenas um homem e uma mulher.
Minutos de uma conversa entre um homem e uma mulher, despidos e solitários de outras gentes, uma bolha de sentires em comunhão, esquecidos de si, apenas devotos ao outro.
 
Uma voz de mulher anunciou pelo altifalante o fim da linha.
Ele segurou a mão dela pela ponta dos dedos e tocou ao de leve com os lábios. Ela ergueu-se.
Saíram e seguiram em sentidos opostos.
Ele curvado e cabelo ralo, os ossos a atrasarem os pés arrastados.
Ela galgou as escadas a dois e dois, mal pousando o bico dos pés no chão.