Tamanhos

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Apertou-lhe o casaco de fazenda quadriculada, que lhe picava no pescoço.
Deu a mão ao avô, grande. Compraram um cartucho de castanhas assadas, uma dúzia, dois tostões. Um silvo de vento frio fez adensar as nuvens chumbo, fechar os olhos, o avô a segurar o chapéu de feltro negro, as calças a agitarem-se como bandeiras, vamos depressa que isto ainda vem lá chuva e até lá é sempre a subir, tu aguentas, aguentas ou não? Claro que aguento, e podemos ir lá acima mesmo à cabeça do homem e dá-me mais uma castanha, que eu gosto muito!
O avô tirou a casca estalada da castanha, os dedos de fuligem levaram o fruto à boca pequenina, um O redondo lambuzado de cinza salgada, dois pinotes enquanto mastiga, larga a mão e corre adiante outra vez para junto da mão aninhada.
A certa altura o caminho tornou-se em pó, noutros uma papa de lama, algumas tábuas a fazerem de passadiço sobre poças de chuva, trilhos de rodas de camiões, grandes pedregulhos, óptimos para serem escalados e saltar, olha para mim avô, de braços abertos, sou o Cristo-Rei, vamos embora se não nunca mais lá chegamos! Quero uma castanha, não há mais castanhas, acabaram, anda embora e dá-me a mão.


Chegaram ao topo daquela montanha, rasa como uma toalha de mesa estendida, na beira um monstro de cimento, de braços abertos, a cabeça a roçar o céu sem nuvens, negro. Parecía a qualquer momento, eminente a queda ao Tejo, a aguardar apenas que o admirassem para depois se lançar ao ar e afundar-se nas águas lá em baixo. Ele vai caír? Não, está só a abençoar Lisboa, não vês como está virado para lá?Não, ele está de costas para mim, não lhe vejo a cara...mas isso só poderás ver quando fores à outra margem do rio e olhares para cá, queres ir lá acima?


O avô tirou o chapéu e encostou a copa ao coração, erguendo o olhar aos cabelos longos, os braços em extensão, a tunica de betão, o pedestal rasgado por uma multidão de gentes que entrava e saía, portadas de madeira a franquear o interior. Lá dentro o frio parecía maior, haviam gemidos de vento que volteavam frinchas e ranhuras, misturados com o som de passos pisados em areia e gravilha e vozes murmurados como um coro, conduzindo a uma enorme escadaria. O avô apertou-lhe mais a mão e subiram, subiram e ainda mais, ele encostado à parede áspera, sempre em espiral, já tonto daquele sobe dele e desce dos outros, a cruzarem-se com pernas e mais pernas, não pode parar que vem gente atrás e os outros precisam de descer, não olhes para o chão que ficas enjoado, mais um bocadinhao que estamos mesmo a chegar.


Chegaram: da penumbra da escadaria atingiram um ar violento, puro demais, um beliscão nas narinas, onde estamos nós, que alto que isto é, agora não me largues a mão, se ele caír ao Tejo nós também caímos avô? Não, olha além, é Lisboa, é bonita não é? É, quero ver a cara do Cristo-Rei, então olha para ele, levanta a cabeça, mas ele não olha para mim... ele não tem os braços cansados? ele nunca se cansa...


Espirrou. Duas vezes. O avô tirou um lenço branco perfumado a alfazema e limpou-lhe o nariz, a boca ainda mascarrada das castanhas assadas. Desceram. O avô comprou uma miniatura do Cristo-Rei e ofereceu-lha. Ele não gostou. Era pequena, não se podía encavalitar nela.


Avô, quero colo...doem-me as pernas.
Trepou para os ombros do avô, grande. Gostou quando sentiu os braços a aquecerem-no e a voz no seu ouvido, quando chegarmos lá abaixo queres mais castanhas?



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(Maio/2007)

4 comentários:

marisa disse...

belíssimo momento e belíssima escrita!
marisa

coelhinho disse...

ainda heverá avôs com lenços perfumados a alfazema ?

SONY disse...

Como sempre lindo! Senti o vento na cara, o cansaço nas pernas, as tonturas e o sabor das castanhas na boca.

senti tudo... e ainda sinto Cristo a abençoar-nos.

Que te abençoe sempre, mesmo estando de costas...estará sempre de braços abertos.

beijo minha Gas.
Sony

Rui Gonçalves disse...

Isto é tremendamente delicioso. Nenhuma lágrima mesmo de emoção chegaria para descrever o que se sente a ler.
Só alguns e muito poucos, têm a capacidade de escrever assim.