A caldeirada

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Entrei no tasco amontoado em forma de casa por umas tábuas ratadas de outros usos que tivera, mais pela necessidade de fugir das chapadas do sol que me comíam o pescoço do que propriamente pelo apetite que (não) tinha já perto da hora da degustação.
Estava fresco e uma luz quebrada permitia, finalmente, libertar as rugas dos sobrolhos que se esforçavam por proteger a vista.
Dirigi-me ao balcão mas nenhum empregado apareceu. Senti-me examinado pelos demais fregueses, que de lado e em viés beberricavam nuns copos atacarrados de vidro grosso. Antes que dissesse alguma coisa, um homem de costas largas como um armário vibrou-me um "Diga Patrão!", sem se voltar. Aproximei-me da cadeira onde se sentava, dobrado por uma barriga volumosa que o impedía à primeira de chegar ao chão: foi aí que notei que jazía um tacho largo ladeado pela sua perna esquerda, forte e musculada e a direita, que terminava num espigão grosso de madeira.
Fiquei atónito! Um homem com uma perna de pau!
-Vem para matar a malvada? - interrogou.
Eu estava sem palavra e completamente hipnotizado por aquele toco de madeira que lhe nascía das calças enroladas...
Mas também pela destreza com que manejava um canivete ferrugento e diminuto, ao rodelar as cebolas chorosas a que aqueles olhos e pele tisnados estavam imunes. Depois pegou numa cabeça de alhos e nas palmas calejadas fez uma papa odorífera capaz de matar qualquer vampiro. Do canivete saíram modeladas ovais de batata. Deitou-lhe grosseiramente partidos uns bons tomates vermelhos e envernizou tudo com uma golfada farta de azeite que não tinha marca.
-Patrão, vá-se chegando que a caldeirada tá a ser feita! - mas eu não me cheguei para lado algum que os aromas que provinham daquele tacho amolgado de apenas uma asa tão deficiente como o mestre que o enchía, eram um deslumbre para os sentidos.
Estava eu nestes devaneios do palato quando um ladrar furioso me acordou para a realidade: entrou uma figura amarrecada, escura pelo contra-luz da porta escancarada, acompanhada de um cão gordo e baixo, de pêlo hirsuto semelhante a uma alcatifa coçada pelo tempo: - Eh! Chico! Que nã havía maneira home! Tavas à espera que o pêxe te saltasse pra cima?! - e o Chico ladeado pelo cão Serafim que não se calava, depositou à beira do tacho um alguidar amarelento repleto de peixe viscoso.
O homem da perna de pau deitou dois dedos grossos a um pedaço de pata roxa, depois um naco de safio, uma fiada de raia, duas postas abertas de tamboril, uns figados de pescada e um e outro peixe indecifrável pelo seu aspecto tenebroso.
Serafim ladrou mais uma vez, rouco já; o cozinheiro de serviço alçou o toco de pau ameçando o canídeo. Temi pelo pior ao ver o canivete descrever figuras dignas de um florete em riste, mas o Serafim apesar de obeso tinha nas suas lides a do verdadeiro "toreador" e na perfeição de uma Verónica trocou as voltas e arremessou-se à perna verdadeira, arranco-me uma gargalhada que de imediato abafei não fosse o mestre-cuca tentar envenenar-me.
Voltou a regar tudo de largo azeite e no final, exclamando: -Agora, o principal! A capela! e afiou os olhinhos seráficos para o seu segredo, fazendo-me crescer água na boca e no espirito.
Que diabo era a capela?
Ao fim de pouco mais de meia hora, veio o tacho desasado para a mesa corrida, à laia de pega uma rodilha sebenta que levantado o testo chamou os outros desencostando-os do balcão. Sem toalha, nem guardanapo, nem faca, apresentaram-me à caldeirada num prato lascado de sopa.
Serafim agora emitia pequenos latidos e mordiscava como um palito a prótese carunchosa do nosso cozinheiro.
Todos comíam com gosto entre a fumarada dos pratos e o aluminio do tacho, desenvolvendo uma linguagem codificada que não entendía.
Entre as garfadas aparadas nos dentes gastos do meu garfo, desenterrei naquela molhanga saborosa um molhe verde e perfumado que o Chico apontou com o seu prato e me referiu entre os dois dentes que lhe restavam, "Oh! Patrão dê cá a capela!".
Fiquei assim deslumbrado com tanto sabor, tanto saber.
Consolado e esquecido das chapadas de sol, só me recordo de pousar a cabeça entre os braços e adormecer por cima da mesa engordurada, embalado por um assobio e uma luz encantada de final de tarde, linda, captada apenas pelas coisas simples da vida.




(Novembro/2005)

1 comentário:

Vicktor Reis disse...

Querida C. G.

Como sempre me acontece "entrei" neste teu conto sentindo que dele parte inteira fazia.

Senti os odores de uma caldeirada caparicana, quem sabe se o mestre-cuca não seria o "Chico Bóia", e deleitei o meu palato...

Fiquei a olhar aquela tosca porta que dava acesso à taberna na esperança de ver entrar El-Rei ou quem sabe uma bela mulher de olhar profundo.

Beijinhos.