O que vou ser quando for grande

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Mário Paredão foi o terceiro de quatro irmãos. Depressa se apercebeu das dificuldades que a família tinha para sobreviver, que a agricultura a que se dedicavam mal dava para o próprio sustento. Não queria para si o destino dos pais e dos seus irmãos e irmã. O olhar perdia-se pelas planícies douradas das searas por colher e via-se longe dali, noutro ambiente, noutro conforto. Por isso, quando lhe perguntavam aos sete anos, o que queria ser quando fosse grande, toda a gente se surpreendia com as suas afirmações: “ – Marinheiro ou funcionário público!”, e riam-se, que ninguém conseguia perceber qual a semelhança e como um fedelho tão pequeno pensava numa palavra tão rebuscada como funcionário público! Quando alguém queria saber mais por essas preferências, de imediato lhe repetiam a resposta “ Funcionário público?!”, ao que ele de cara séria e sobrolho carregado pela convicção, se defendia “ Sim, funcionário público para ter uma reforma!” .

E ninguém o levava a sério.

Tão pouco ele se importava.

Deixou o tempo correr e ele a correr pelo seu sonho.

Aos dezoito anos foi trabalhar para uma estação de caminhos-de-ferro, como ajudante. Ía e vinha da sua aldeia, calcorreando quilómetros que lhe empoeiravam os sapatos estimados de Domingo, que nunca se sabia, podia talvez encontrar alguma rapariga a quem pudesse roubar um beijo e não queria fazer má figura. Pois que nestes trajectos da vida, foi arranjando namoros como papoilas em searas de trigo, aqui e ali. Achava-se de boa figura e no bolso, exibia-se a si num pequeno espelho que sempre trazia consigo, que a tempos certos reflectia o carão moreno tisnado das caminhadas e num solilóquio murmurava “Tu és bonito…AH!Como és bonito!”.

A certa altura avisou a família que já não viria todos os dias. Assim, esquivava-se ao trabalho manual da ordenha e poupava nas horas que despendia para chegar à estação. Além de que o chefe da estação tinha agora a sua mulher e filha consigo e, como era linda aquela filha!Mário Paredão estava completamente obcecado pela tez clara de Lúcia, os olhos muito azuis e um cabelo em anéis que caía em cachos de oiro pelos ombros muito brancos. Que contraste havía com as outras raparigas que conhecera da sua aldeia, muito morenas, de cabelo escuro sempre repuxado num penteado untuoso de carrapito.Cortejou Lúcia durante a semana e cada vez ía menos à sua aldeia: O chefe da estação tinha gosto naquele namoro, pois gostava do rapaz e vai nele um futuro ambicioso além de que a filha estava na idade de casar.

Mário Paredão foi uma ultima vez a casa, trazendo uma trouxa magra e deixando muitas lágrimas pelo amparo financeiro que a partir de agora ia faltar na casa de seus pais e irmãos; prometeu voltar; prometeu ajudá-los logo que conseguisse um emprego como funcionário público.

Foi para a capital, com um posto mais elevado e uma recomendação do futuro sogro na bagagem.Instalou-se num quarto exíguo e começou nos tempos livres à procura de emprego. Sabia que Lúcia esperava por ele e queria dar-lhe o melhor.Esperou na fila com outros, por duas horas de chamada e um exame médico a dá-lo como robusto para trabalhar num estaleiro naval. Na tropa não havia ficado apto para todo o serviço por ser duro de ouvido e um pouco lento nas reacções…Depois de seis meses de fome e a trabalhar nos turnos de outros, Mário Paredão tomou o comboio e foi buscar Lúcia.Casaram algum tempo depois, ela já prenha de barriga e de sonhos de felicidade.

Agora, numa casa alugada de cozinha e quarto, Mário Paredão sentia que os seus sonhos se concretizavam: não fora marinheiro mas trabalhava nos cascos dos submarinos e o estaleiro pertencia ao Estado, logo era funcionário público, logo sempre teria direito a uma reforma.Era feliz.

Foi pai. Ela continuava doméstica, a lavar e a limpar, a poupar que Mário Paredão o único luxo que lhe dava era ao Domingo, um passeio junto ao rio, de braço dado para que todos vissem que ela era linda como uma estrela de cinema.Fora isso ficava guardada. Não a queria na rua nem para compras de casa, que ele se encarregaria disso, sem necessidade de Lúcia se cansar ou ficar falada.E Lúcia acatava, cada vez mais dependente de Mário Paredão e das conversas de balbucio com o filho criança.Aumentaram a casa para maior privacidade do casal que o pequeno já andava e comia pela sua própria mão.Mário Paredão fez até um pequeno horto para que Lúcia se distraísse a plantar uns ramos de cheiro, que sempre se economizava, o garoto desenvolvia-se e nas noites quentes de Verão podiam, se tempo livre ele tivesse, ficar à conversa e tomar uma fresca.

Era neste quintal que Lúcia estendia a roupa e num desses dias de barrela assomou ao muro que delimitava o terreno, um homem não conhecido daquelas paragens, que se descobriu, agarrando o chapéu num gesto delicado e curvando-se cerimoniosamente perante uma senhora perguntou-lhe se estaria enganado no caminho para o estaleiro.Ela fez uma pala com a mão, protegendo o azul dos olhos e sorrindo por delicadeza.Esticou o braço para que o desconhecido ficasse certo do caminho a seguir, apontando na cava do vestido florido uma carne branca e macia.Um colega do estaleiro de Mário Paredão passou abrandando o passo e ainda conseguiu escutar um risinho de Lúcia.O homem do chapéu agradeceu, deu as boas-tardes e retomou o seu caminho agora sem enganos até ao destino.

Mário Paredão batia o martelo com afinco na chapa dos fundos do submarino de pavilhão inglês. Não ouvia o que lhe diziam. Só pensava em endireitar o metal e batia, batia com uma energia sem fim e um ecoar estrondosos que abafava tudo e todos à sua volta. Mas de repente pareceu ter ouvido “Lúcia”…ficou alerta, sem deixar o martelo. E mais uma vez o nome da sua mulher. Não hesitou e perguntou aos companheiros de que falavam. Calaram as ferramentas e a voz. Mário Paredão insistiu. Só um, meio escondido lhe devolveu a palavra “É a tua mulher, Paredão! Olha que ta roubam!”.

Mário Paredão deixou de ver e ouvir, sentiu uma cólica, um gosto de sangue a tingir-lhe a boca.Agarrou o companheiro mais próximo pelo fato-macaco sujo de óleo e ferrugem e aos safanões exigiu que lhe dissessem o que se estava a passar. O homem preso junto ao pescoço e transpirado pelo medo e pela falta de ar no fundo do submarino gaguejou, fazendo um relato do que lhe tinham contado.Mário Paredão não ouviu tudo até ao fim, saiu a correr, deixou o estaleiro para trás, o fato-macaco aberto no peito ferido, as lágrimas a salgarem o ódio e o suor.Entrou em casa, onde Lúcia dormia a sesta com o filho, agarrou-a pelos cachos de cabelo dourado, depois por uma perna quando ela caiu e de arrasto, trouxe-a para fora.Voltou ao lar e de braços apertados na roupa dela, atirou-lha à cara pálida e chamou-a de rameira.Depois pegou no filho e largou-o nos braços dela.Fechou-se em casa, imune aos gritos de Lúcia e ao choro do menino.

Não voltou a vê-la.

Só soube dela no dia em que morreu tísica e desencantada da vida.




(Janeiro/2006)

2 comentários:

SONY disse...

Este texto prendeu-me aqui.

ontinuas a mesma Gas, aquela que escreve e que me prende até à última palavra, e ainda fico a olhar para ver o que há mais...é onde encontro a palavra "comentários".

Mostras-nos aqui algo muito real...infelizmente há quem não dê valor ao que tem na vida...

um beijo sony.-)

ASPÁSIA disse...

LÁ CONSEGUI VIR A ESTE CANTO E ESCUTAR O CONTO!

CASO PARA DIZER - POUCO AMA QUEM NÃO CONFIA NO AMOR QUE TEM!

MUITÍSSIMO BEM CONTADO, GAS!
PARABÉNS.

BEIJO EN-CONTADO!