O pavilhão chinês

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Já passou tanto tempo que acabei por perder a conta aos anos.

De inicio ainda sabía quantos, até os meses e os dias que tinham decorrido desde aquela tarde em que a conheci. Mas a partir de certa altura contar o tempo passou a ser secundário e tudo o que me resta é fixar na memória a voz, a pele das mãos, as palavras que troquei com ela.Tenho medo de esquecer... talvez por ter sido tão fugaz e ao mesmo tempo tão comum.

Há perto de meia-hora que me entretinha com o jornal desportivo, páginas escancaradas nos braços abertos, as folhas tapando-me o rosto, o tronco. O meu copo de vinho tomado religiosamente às seis da tarde era a minha única companhia. Alguns clientes já habituais acomodados nos sitios do costume, um meneio de cabeça em tom de cumprimento polido. Voltei à minha leitura e ouvi o empregado falar num tom mais alto do que o habitual; donde estava não conseguía ver a porta de entrada mas era de lá que vinha o som. Fiquei à espreita na mira de me deparar com algum freguês que não fosse benvindo, mas nada aconteceu e tudo voltou àquele sussurro abafado pelas alcatifas e pelas prateleiras cheias de bibelots.Quando baixei o jornal para dar um gole no meu Dão tinto é que a vi.

Mesmo na mesa defronte da minha. Tinha o cabelo e a roupa encharcados mas não parecía importar-se com isso, tão pouco aparentava ter frio naquela tarde de Dezembro. Tinha o semblante calmo, não usava maquilhagem e a sua figura recortava-se em negro como um destaque perante os móveis lacados a creme.O empregado trouxe-lhe um absinto mas foi ela própria que lhe ateou o fósforo.

Fiquei suspenso a ver aquele ritual de fogo até à sua extinção. Mas quando ela levou o cálice grosso aos lábios, de olhos fechados, perdi a noção de tudo e como que embriagado pelo que ela tomava e eu só assistía, sentei-me ao seu lado.

Falámos sobre ninharias, como se sempre nos houveramos conhecido, rindo dos pormenores fisicos dos outros, baixando os olhos comprometidos quando o empregado passava equilibrando a bandeja cheia.Lembro-me de lhe ter tomado a mão entre as minhas e de lhe ter dito que a quería... ela, imperturbável olhou-me fixamente e respondeu que o tempo era uma coisa relativa e se eu quisesse podería tê-la até ao fim da vida. Bastava eu querer. Ainda lhe retorqui que falava a sério, muito a sério, que agora que a havía descoberto não iría permitir que nada nos afastasse um do outro.Ela nada acrescentou. Só me olhou docemente e beijou-me nas costas da mão.Levantei-me para ir buscar o meu copo à mesa onde estivera sentado.Quando me voltei ela já não estava. Só o assento com uma marca do seu corpo. Molhado. Na mesa o copo de absinto ainda com restos de açúcar como depósito.

Continuo a vir aqui ao Pavilhão Chinês.

No principio vinha todos os dias da semana. Agora só venho em Dezembro. De inicio sentava-me na mesa dela, com a mão a afagar a marca mais escura no estofado. Já trocaram o veludo dos assentos. Eu voltei à minha mesa.

Mas de todas as vezes que a porta se abre levanto o meu jornal a esconder-me.Sei que um dia vou baixá-lo e defronte a mim ela há-de lá estar.Nunca cheguei a saber como se chamava.




(Julho/2007)

1 comentário:

o Reverso disse...

de repente acordaste as minhas recordações. ia lá com alguém que já não.