O nevoeiro

.

.





.

O primeiro a dar com ele foi o bode cobridor do Maneiras. Ou melhor: foi o cão do Maneiras, que ciente da sua função correu atrás do bode quando este, tresmalhado, se desviou para os lados de uma das inúmeras fendas que se rasgavam no Caminho Branco.
O Maneiras silvou de fininho e chamou ao cão o seu regresso mas, este próximo do bode latía e ganía, ora abanando o rabo ora agachando-se de focinho espetado à fenda bordejada de verde-escuro. Maneiras voltou a assobiar e praquejando ao "raça do cão" pôs-se à escuta dos sons da terra, que esta era sua conhecida, habituado que estava a tê-la como única companheira pela maior parte do tempo.
Mas nem do guardador nem do bode de estimação recebía imagem de volta ou som de retorno. Pela terceira vez apertou os lábios afunilados e saíu-lhe um apito longo e agudo, para logo a seguir gritar "Eh, eh, eia!". Sentiu o arfar do cão a aproximar-se que ver, não vía mesmo nada. O nevoeiro tinha aparecido denso, colado e branco como o Caminho havíam quatro dias, e se bem que naquelas terras fosse usual ele cobrir montes e escarpas, desta vez tinha chegado e não se levantou mais.
"Eh danado!", exclamou pegando no pêlo espesso do cachaço do cão, para logo este se escapulir para dentro do nevoeiro.
Maneiras, contrariado, deu passadas largas sentindo o cheiro do animal como um rasto a seguir. Sabía onde pôr os pés, evitar as manchas verde-escuro que aqui e ali riscavam a terra sempre húmida, pois conhecía os trilhos desde a infância e os anos havíam-lhe desenhado um mapa na memória, que até na escuridão lhe acendíam imagens.
Já ouvía com nitidez o balir triste do bode, repetitivo, como um sino da desgraça. Acercou-se de mão esquerda esticada à frente, a vara espicaçando a terra mole e resvaliça, e deu com o cão de vigia ao bode e à fenda escancarada.
Chegou-se perto do abismo, as biqueiras para lá do apoio da beira. Não viu nada, só verde, muito escuro quase negro. Vergou-se um pouco e afiou os olhos e foi então que descobriu, dobrado e entalado onde a terra aberta se voltava a unir, bem lá no fundo, um homem de pés e rabo voltados ao céu.
Deu um passo atrás, sentindo de novo a segurança do terreno.
Enxotou os animais e assobiou à recolha das cabras, num som curto, curto, longo e terminado em curto.
Voltou a espreitar. Acocorou-se e olhou à volta à procura de um socalco, um apoio que fosse, uma rocha que servisse de degrau até ao fundo onde aquele "desgraçado" - murmurou - espetado e ensanguentado, dormía para todo o sempre.
Mas nem pensar em descer ou iría fazer companhia ao morto.
Ergueu-se e notou que o nevoeiro se adensava, molhava até.
Fez o trajecto até casa, fechou as cabras e fez-se ao caminho da vila, o cão de seu lado.
Quando entrou na taberna todos se voltaram e o Zé Navalhadas, proprietário do estabelecimento parou de lustrar o balcão e levou as mãos à cinta, exclamando que o Maneiras devia "estar enganado, que hoje não é Sábado!" e rindo, acrescentou "o nevoeiro deu-te a volta ao miolo!". Fez-se um coro de gargalhadas que o Maneiras ignorou. Chegou-se perto do taberneiro e contou-lhe baixo a sua descoberta. O outro deixou caír o trapo que dava serventía a tudo e num êxtase macabro reproduziu o relato para todos ouvirem.
Falavam ao mesmo tempo, perguntavam insistentemente ao Maneiras quem era o homem, porque razão estaría ali e um, de imediato, atribuiu ao nevoeiro que tirava as vistas a todos, a cegueira do caminho. Silenciaram-se. Ficaram a matutar, olhando pelas portadas da taberna o branco pastoso que parecía uma cortina opaca a vendar a entrada.
Bartolomeu, que havía vários dias não saía ao mar, que também os Mosteiros estavam embrulhados naquele manto, disse em voz baixa que tinham que ir à GNR.
Todos concordaram e nova exaltação para constituír um grupo que se apresentasse com o sucedido às autoridades. Medeiros foi escolhido, pois tinha boas falas e de todos, era o único que não tinha nem tivera na familia pendências com a farda. Juntaram-se-lhe Maneiras e o Zé Navalhadas que deu o expediente daquele dia por fechado.
Abalaram-se os três, devagar que não se víam ruelas nem esquinas, nem céu nem novelões.



No posto foram recebidos com desconfiança mas assim que o Medeiros contou o achado, o Sargento de serviço chamou o Tenente e com dois praças fizeram-se ao Caminho Branco, levando na cauda uma comitiva ruidosa de quase toda a vila, que a palavra do morto já tinha passado.O Maneiras guiou-os: atrás de si um cordão de mãos para que nenhum se perdesse no nevoeiro ou caísse nas gargantas rasgadas.
Faltava o ar, o espesso da névoa entrava nos pulmões e depois de terem chegado, um silêncio de temor pelo que não se vía caíu tão pesado, que chegaram uns quantos a pensar que não voltaríam à vila.
Os homens mais corpulentos ataram cordas à volta do tronco, no seguimento enroladas a braços habituados a trabalho manual e neste guindaste improvisado fizeram descer os dois soldados, trémulos e a baterem com as botas e os joelhos nas paredes daquelas rachas verde-escuro.
Voltaram o morto de barriga para cima mas um dos soldados não evitou o grito quando olhou o rosto desfigurado e azul, os membros partidos ao dependuro.
O Tenente cá em cima gritou "Puxem! Puxem!" e desordenadamente, deram força de içar aos esticões, os praças a baterem desconsoladamente nas lâminas da rocha e de encontro ao morto que lhes sujava a farda naquela subida pela vida, temendo que a terra abrupta se fechasse e os engolisse para todo o sempre.
Navalhadas curioso, debruçou-se junto ao corpo e muito perto da cara mutilada, benzeu-se e informou que "era o filho do Fadigas!", tinha a certeza pois vira-lhe o dente de ouro bem na frente da boca aberta. Bartolomeu persignou-se e disse que alguém tinha que ir avisar o pai, que isto era mesmo uma "desgraça! Pois o moço até estava para abalar para a América". Todos baixaram a cabeça num colectivo pesar e de imediato endereçaram-lhe uma oração de encaminhamento da alma.
O silêncio foi interrompido pelo cão do Maneiras que desatou a ladrar e nem sequer à ordem do dono este se calou. Olharam em volta mas só o nevoeiro os envolvía. O ladrar continuou, o cão abanava a cauda de um contentamento sem explicação e Medeiros virou-se ao Maneiras, culpabilizando-o por aquele sacrilégio, que pressionado ameaçou o canídeo de uma "malha". O cão esgueirou-se desaparecendo no branco do neveoiro e de imediato se quedaram os latidos.
O Tenente deu ordem de regresso e todos em fila voltaram a dar as mãos com o Maneiras a liderar.
Não havía muito a saber, concluiu no dia seguinte o Tenente: o inquérito estava fechado por sí só, já que a "queda da vitima se devía a condições climatéricas adversas que neutralizavam qualquer visão um palmo adiante". O Fadigas pai só quería fazer o funeral ao filho e seguir com a vida, que a promessa de melhores condições quando o falecido chegasse à América, estavam tão enterradas como ele, por conta das dívidas que já tinha contraído por causa do barco novo e os Mosteiros continuavam tão nevoentos como o Caminho Branco ou até mesmo o Nordeste. Por outro lado, o Tenente limitava-se a fazer o mínimo indispensável para que a sua folha de serviços saísse sem mancha: já lhe bastava o castigo do degredo naquela ilha, por um negócio mal orientado de saias com a mulher do seu anterior Capitão que tudo fizera e conseguira para o afastar do continente.
Durante algumas semanas ainda se comentou a tragédia da família do Fadigas e o horror de quem estivera no local junto à fenda verde-escuro.
Mas o nevoeiro, teimoso, branco e cego lá continuava. E a vida, também.



Maneiras tinha levado um bocado de pão lêvedo e flor de torresmo para o petisco da tarde. Para adoçar o picante nada melhor que um maracujá.
Comía de pé e repartía pedacinhos com o cão, obediente sentado de frente, babando nos cantos do focinho.
Quando o Maneiras lhe ofereceu a lambidela das cascas dos maracujás, as orelhas do cão espetaram-se, rodaram para trás, voltaram a entesar-se e recusou a guloseima, virando costas ao seu protector, desatando a rosnar, a ladrar e a abanar a cauda.
Maneiras deu-lhe com a vara, admoestando-o mas reconheceu naqueles sons o latir da tarde em que tinham tirado o filho do Fadigas do rasgão assassino. Também ele apurou o ouvido, tentou afiar a vista mas o nevoeiro implacável embaciava qualquer nitidez.
O cão ganiu e partiu em correria. Ainda o ouviu não muito longe, um ladrar de contente e depois mais nada.
Maneiras atirou as cascas dos frutos para longe e guardou a lâmina da navalhinha.
Começou a andar rápido, depois mais acelerado ainda, as narinas abertas a farejar o cheiro do cão, os pés a alçarem-se onde não havía chão e de repente, o cão apareceu-lhe às canelas, todo ufano, a cauda agitada no reencontro, a pôr-se nas patas traseiras para logo dar sinal de que quería que o seguisse. "Quem está aí?", gritou prosseguindo na marcha, a vara espetada adiante na eminência de se deparar com um estranho. Estacou, pendeu a cabeça à direita para que o lado que ouvía melhor apanhasse claro o que lhe parecía ter sido um som de passos a afastar-se... ficou uns segundos assim, chegou até a fechar os olhos... e um clarão acendeu-lhe na cabeça a imagem do filho do Fadigas a caír na fenda.
Correu para o sítio e espreitou para o corte da terra aberta em duas: lá estava um homem de borco, embrulhado no verde-escuro.
Pareceu-lhe que se mexía, chamou, assobiou como fazía às cabras, agarrou num seixo e fez pontaria às costas do homem. Nem um movimento, um som, um respirar que fosse subía das profundezas até às beiradas de rocha.
Maneiras inquieto, começou a andar em circulos, resvalando junto ao rasgão, o nevoeiro a deslizar, baço, como lençóis molhados.
E de vara erguida como uma lança, correu Caminho Branco abaixo, esquecendo as cabras, só o cão a par naquela descida desenfreada.
Entrou no posto da GNR encharcado e numa voz de trovão pediu que "fossem! Mas fossem já! Que já caiu outro à racha!". O Sargento chamou dois homens para o acompanhar e seguiram o trajecto inverso, sem se dar ao incómodo de acordar o Tenente, que aquela era a hora em que fazía a sesta.
Deram as mãos ao Maneiras e os quatro sem se libertar daquele elo espreitaram para a cova rochosa, apreensivos, receosos que a fenda os sugasse para o seu estômago.
O Sargento amarrou-se com o Maneiras e de pés bem fincados repetiram as manobras de descer os dois soldados e à vez içaram primeiro o desconhecido e depois os praças.
O que fizeram subir era mais um corpo deformado e esboroado como o do filho do Fadigas: a barriga, um pouco proeminente, tinha estourado com o impacto e era coisa muito feia de se ver e cheirar. Ainda estava rosado, era um "morto fresco", sublinhou o Sargento olhando o Maneiras. E depois silenciou-se. E disparou que o "caso está a ficar mau para o teu lado, ó Maneiras!". Mas o Maneiras agarrou-lhe as bandas da farda e agitou-o, sem emitir um som que fosse; depois libertou-o mansamente e preparado para o contra-ataque tirou a navalhinha do bolso e fez saltar a lâmina junto ao pescoço do Sargento. Este engoliu em seco e num soluço disse que era o "nevoeiro".
O Maneiras desapareceu entre o branco, seguido pelo cão, e deixou-os entregues às apalpadelas de encontrar o bom trilho de volta, carregando o morto às costas.
Dois dias depois, um Sábado, entrou na taberna do Zé Navalhadas e soube que o defunto era o rapaz mais novo do leiteiro: tinham descoberto por causa do calo que tinha na mão esquerda, das rédeas de guiar o cavalo ajoujado das bilhas de aço a pingar leite. Que "era uma pena!", que até estava já com a passagem comprada e "tudo", tanto "tempo a amealhar para comprar o bilhete de avião para ir ter com a irmã à América", que esta tinha partido e casado por lá e tinha uma "vida muito boa!".
Maneiras limpou a boca às costas da mão e o cão veio lamber-lhe os pingos de aguardente. Pagou e saíu sem conversa.
No dia seguinte e como todos os dias levou as cabras ao Caminho Branco.
Nesse dia como desde há vinte, o nevoeiro empastava tudo.
Estava sereno e alerta, observava atentamente o cão, de quando em vez um afago abrutalhado nos lombos, uma sacudidela nas orelhas.
Pareceu-lhe ver um vulto, uma mancha a passar... o cão imóvel espetava a cauda na horizontal, o beiço levantado a rosnar, depois um latido curto, a corrida, Maneiras a segui-lo.
E de repente, a andar de braços esticados o olhar fito no chão, a figura de Saul, o filho varão de Bartolomeu.
Maneiras atirou-se às pernas do rapaz deitando-o ao chão e tapando-lhe a boca com a mão olhou-o tão profundamente que o silenciou. Depois sussurrou-lhe junto ao ouvido que "por nada de nada te levantes daqui". Ergueu-se e fez-se de peito ao nevoeiro em direcção à racha que tinha servido de cova aos outros dois.
Encontrou-a onde esperava.
Joaquina parecía que o aguardava, as mãos cruzadas frente à saia gasta, o rosto e o cabelo molhados de tanto andar às voltas com o nevoeiro.
Ficaram a mirar-se.
O Maneiras tirou a navalhinha e ela começou a falar:
- Sabes Maneiras...estão todos a ir embora. Os que prestam. Os que ainda restam solteiros para a minha Juliana. Acham que ela não é boa rapariga para eles. Só as da América é que servem! Se tu tivesses filhos percebías do que estou a falar...". Depois baixou os olhos para a racha bordejada a verde-escuro.
- Como é que vai ser agora?! Ela está de bucho cheio e nem sequer sabe quem foi...só me falta o Saul Bartolomeu! Deixa-me acabar com esta vergonha, Maneiras! Andaram todas a farejá-la e depois ala! Que vou para a América!.
Maneiras guardou a navalhinha e fez-lhe um gesto de cabeça.
Joaquina olhou-o e saltou para dentro da racha.
Ele ouviu os ossos a baterem nas paredes pontiagudas e depois um som igual ao de uma melancia estourada quando não a seguramos nos braços.
Deu meia volta e desapareceu no nevoeiro.
Passou rente a Saul Bartolomeu que continuava deitado de cara afocinhada no Caminho Branco.
Acertou-lhe um pontapé no traseiro e esfumou-se entre assobios curto, curto, longo e terminado em curto.


(Outubro/2006)

2 comentários:

marisa disse...

Conto perfeito em tudo! A meu ver a tua linguagem compete e não fica atrás com nomes grandes da nossa literatura, como um Aquilino, etc. Obrigada por mais este momento de deleite criativo.

marisa

o Reverso disse...

quero voltar para ler novamente...