Porto-1947

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Os óculos de marca vendavam uns olhos inchados e vermelhos de tantas lágrimas vertidas pela noite fora.
Ardiam aqueles olhos claros ao quente do sol brejeiramente, provocadoramente num dia de luto.O negro do traje ressaltava do branco do mármore dos epitáfios semeados em linha, pontilhados aqui e ali pelo garrido das flores naturais que alternavam com outras, indestrutíveis de plástico.Ouvia-se o murmurio do elogio do morto, acrescentado por um ou outro pormenor picante da sua vida que havía sido plena mas pouco longa; faziam-se cálculos ao dinheiro e às dívidas, ao património e à única herdeira, a viúva.
O cortejo parou onde a cova se abismava para receber no seu leito fofo e remexido de fresco, o caixão intermédio escolhido dos três preços possíveis. Até nisso a viúva era condenada. E também no tailleur francês, demasiado cocktail para aquela cerimónia. E ainda por não ter soluçado uma só vez ou ter ameaçado o fanico.Não houve despedidas de última hora com o esquife aberto, a flor lançada à tampa do caixão, a oração de encaminhamento da alma para o paraíso.Fez-se o que havía de obrigação e fechou-se o dia, guardando a chave na memória.Levaram a viúva a casa, impondo-se a presença de amigos que se fazíam de intimos: ela repudiou a ideia e como se isso não bastasse, disse não, e bateu a porta barricando-se no cheiro ainda palpável do morto.

Desataviou-se da negrura e mergulhou na banheira, os olhos fechados, a boca apertada, o oxigénio sem entrar.Mas o instinto e o liquido a penetrar nas narinas fizeram-na levantar como uma mola, a água balanceando e transpondo os bordos alagando o azulejo do chão, a gota que faltava para o dique do coração rebentar.Chorou, gemeu, o queixo tremendo do frio da saudade, da antevisão de noites em que a cama ficaría maior, o vazio, o silêncio da gargalhada, a falta da mão na mão.Ficou nua, acocorada num tempo sem medida, entregue ao abraço que dava a si própria. Chegou mesmo a adormecer e gelada ao acordar, levantou-se, vestiu o roupão que fora do morto e acomodou-se na poltrona de orelhas que tinha a cova do peso dele marcada no estofado.

Passeou os olhos pela sala onde todas as noites fazíam companhia um ao outro.Deteve-se pela mesa de café onde uma caixa de madeira com embutidos de latão guardava uma das paixões dele: abriu-a e acendeu um "puro". Ficou a olhar os rolos de fumo a subirem, perfumando o ambiente e trazendo a imagem do morto a dar chupões na ponta do charuto, o fósforo comprido a soltar pequenas faúlhas pela sucção; e depois o ar prazenteiro, o fechar de olhos acariciando aquela sensação das coisas boas da vida, a que o morto só se entregava em momentos especiais, quase de festejo.A viúva mirou o "habano" com um sorriso triste, falando como se continuasse acompanhada. E até conseguía ouvir as respostas dele; e depois retorquia, defendendo a sua opinião, uma pequena gargalhada ao escutar uma graçola.
Largou o charuto e voltou a chorar.
Doía-lhe o corpo, a pele, o roupão dele que a cobria.

De repente ouviu-o sussurar em "ocasiões especiais" e soube imediatamente do que o morto lhe falava.Da garrafeira, lá bem no fundo, puxou uma garrafa escura, sem elegância nem rótulo trabalhado. Tinha pintada a letras brancas numa tinta grumosa a palavra "Porto-1947".Conhecía desde sempre lá em casa. Tinha sido oferecida pelo pai dele e cada vez que ela referia o tesouro esquecido ele sempre adiava tocar naquela preciosidade, argumentando que estava guardada para uma ocasião especial.Mas nunca tinha havido nenhuma.Primeiro porque eram demasiado jovens, depois porque ele quería manter a tradição e fazer justiça ao seu pai tornando-se o guardião, a seguir esperaram pelos filhos que não tiveram, depois abriríam a garrafa quando celebrassem as bodas de prata. E de ano em ano, com a vida a prazo, o "Porto-1947" conseguira resistir aos ataques da tentação, da lembrança, da comemoração.

A viúva não hesitou: cortou o lacre com uma exactidão de relojoeiro à volta do gargalo, sentindo na sua a mão do morto, preciso e firme. Feriu a cortiça da rolha com a espiral fria do aço do saca-rolhas e depois, com mil cuidados, evitando a agitação e o movimento brusco, puxou devagar e suavemente o pequeno cilindro para fora, extraíndo uma aroma de framboesas e mirtilos macerados. Limpou com uma carícia o gargalo e decantou o néctar para um frasco de cristal.Observou extasiada o pé borrento e de cor ferrugenta que se depositou na gaze que filtrava o liquido: aproximou o nariz e aspirou fortemente, inebriando-se com o halo antigo e depurado.
Serviu um cálice generosamente.
Depois um outro, pousando-o frente ao assento do morto.Levou o seu copo aos lábios e sentiu o alcool leve adormecer-lhe o beiço, como se tivesse passado um baton.Tomou então um gole farto e ergueu o "Porto-1947" ao alto, num brinde mudo.
Aí sentiu que largara o luto.

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(Janeiro/2006)

2 comentários:

marisa disse...

Uma despedida sentida e digna de palco ( no bom sentido).
Adoro os teus contos.
bj
marisa

Arábica disse...

Já elevei o copo, a garrafa e o coração, há muito.



Contudo, acredito que na metamorfose do luto, algo se perdeu.


Não sei o quê.


Se a capacidade de acreditar.

Se a capacidade de duvidar.


:)

Bom fim de semana.