A fotografia

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Baez tinha uma fisionomia peculiar: baixo, entroncado, ruivo e um nariz adunco que podería iludir uma ancestralidade judaica.
No entanto, o que ele fazía ressaltar era o seu nome castelhano, que tinha não recebido na linha directa de parentesco mas que havía adoptado de uma tia afastada e banida da familia que tinha feito furor na Guerra Civil de Espanha a matar desejos da carne, daqueles que passavam a fronteira para Portugal encobertos pela noite sem lua.
Baez era um celibatário não por convicção mas fundamentalmente por teimosia e também porque no seu caminho não se tinha atravessado - ainda - a sua "cara-metade" como costumava justificar em tom de brincadeira. Brincadeira aliás, que parecía ser o seu modo de vida, pois o sorriso que permanentemente mostrava faría deduzir ao menos atento que era feliz.
Acompanhava-se sempre, de uma mala que protegia a sua grande paixão: uma máquina fotográfica.
E por tudo e por nada, sacava da sua arma e disparava: era uma janela entreaberta que o motivava ou um rosto enrugado que lhe lembrava um pedaço de terra seca. Mas o mote principal da fotografia eram mesmo as mulheres. Tinha-as em álbuns onde carinhosamente as apelidava de estações, com o mês adequado à cor do cabelo ou ao seu temperamento, com uma pequena frase que as distinguía e separava, como caracteristicas que lhes estivessem inerentes. Uma loura de olhos azuis era sempre Inverno, talvez um "Janeiro sobressaltado por um granizo que podería refrescar a minha bebida favorita" ou uma morena de boca grossa, "aproxima-se o tempo das castanhas, um lume brando no meu coração" referente a um final de Setembro.
Amava-as a todas. Mas só no álbum fotográfico. Na verdade quando fixava os seus modelos no rolo, dava-lhes atenção mas não as amava; deixava esse sentimento subir-lhe ao peito só quando se encontrava na intimidade da casa de banho, transformada em laboratório fotográfico.
Justificava essa maneira de ser como herança da tal tia espanhola que a todos quería e a nenhum se prendía, e conforme os contornos se começavam a delimitar em manchas primeiro, depois partes do rosto e por último no todo sob os liquidos da revelação, assim se sentía amarrado àquelas expressões femininas impressas a preto e branco, num crescendo de emoção até às lágrimas que deslizavam entre o nariz adunco. Penduradas, as faces de papel ligeiramente abaulado eram revistas à lupa, num carinho atribuído a cada uma como se unica fosse no mundo.
Num dia de finais de Outubro, Baez arrastava-se avenida abaixo, estojo fotográfico à tiracolo atrapalhando o movimento das pernas.
Caminhava sem destino, num passo ritmado para aquecer e alhear-se do ruído do trânsito. Passou por uma paragem de autocarro onde viu uma mulher de cabelo ao vento. O instinto beliscou-o e sem deixar de andar deitou a mão ao fecho da mala e tacteando puxou a câmara para fora, pendurou-a ao pescoço, destapou a rodela da objectiva, olhou ao alto e avaliou a luz que se projectava no local onde a mulher de cabelo ao vento se encontrava encolhida, quase estática perante o frio que se sentía; só o cabelo parecía ter vida independente, ondulando como uma bandeira incendiada ao sabor da ventania. Sim, que aquela cabeleira era de uma ruiva.Levou a máquina em direcção ao olho esquerdo piscando o direito, o nariz adunco amachucado contra o metal negro, a mão ávida na objectiva procurando captar vida dentro de um quadradinho, aprisionando-o para sempre.
E no momento em que calcou no botão do disparo, ao contrário do habitual, sentiu ele um disparo no peito: a ruiva deitava-lhe a lingua de fora num esgar, o polegar encostado ao nariz em tom jocoso de corneta.
Ficou completamente desconsertado e o coração acelerou de tal forma que a unica coisa que fazía sentido para si era fugir, correr o mais rápido possivel dali.
Foi o que tentou fazer sem olhar para trás, mas o peso da mala e da máquina e ainda a sua estatura atarracada não lhe davam a elegância que precisava naquele momento e atrapalhado, acabou por se estatelar no chão. Levantou-se como uma mola, apanhou um táxi e só se sentiu salvo e com um joelho esfolado no buraco das calças quando entrou em casa.
Revelou o rolo desse dia: o rio picado de branco pela ventania, uma margem orlada por nuvens negras e um raio de sol que as atravessava, um velho pedinte que tocava violino e ela.Ela a preto e branco continuava a incendiar a pelicula.
Baez constatou que lhe havía passado despercebido que tanto ela como ele eram ruivos...e achou curioso, pela primeira vez, que uma natureza idêntica à sua o marcasse tanto...deu consigo a pensar se a sua tia tería sido ruiva, pois no resto da familia que conhecía ninguém tinha os cabelos enferrujados como os seus.
Deitou-se, dorido da queda e perdido em pensamentos vários que o deixavam apreensivo sem descobrir porquê.
Adormeceu envolto numa convulsão de pesadelos com a tia de longa cabeleira ruiva que o envolvía e sufocava. De sobressalto, despertou suado e febril, o joelho babando uma aguadilha ensaguentada que se tinha colado às calças do pijama e mancando arrastou-se até à casa de banho. Mas mal entrou, lá estava a foto dela, pendurada por molas, a lingua de fora desafiando-o e os dedos a imitarem uma corneta. Achou que era demais e decidido arrancou o rectangulo de papel determinado a rasgá-lo: olhou ainda uma ultima vez a cabeleira ondulando e foi aí que qualquer coisa lhe despertou uma vista mais atenta; aproximou a fotografia dos olhos, e de lado, e depois afastando, e de novo junto ao rosto apercebeu-se que algo por entre o cabelo da ruiva tomava forma. Muniu-se de uma lupa e examinou atentamente. Não havía duvida: entre uma brecha do cabelo ruivo esvoaçado, havía um outro rosto. Lá estava, agora com toda a nitidez, um par de olhos, um nariz, uma boca em forma de coração tão pequenino que parecía um beijo dado.Focou apenas aquela face e disparou por várias vezes até aumentá-lo, sucedendo-se nas manobras de revelação e secagem.
Por fim, o joelho inchado e a dor obrigou-o a parar e exausto sentou-se na tampa da sanita, a admirar o que agora era uma cara por quem se sentía totalmente enamorado.
A ruiva estava completamente esquecida.
Só interessava aquela face, dois olhos negros e amendoados, enormes a devorarem quem os fitasse, e um nariz levemente arqueado.
Baez levou a mão ao peito a segurar o coração dentro de si, receoso que da força com que batía desordenado lhe saltasse.
Coxeou agarrado à mobilia e aos encontrões pela casa escura da noite, abriu uma gaveta, tirou um álbum e desfolhou com o indicador humido de saliva à procura de um retrato envelhecido.
Arrancou-o sem cuidado e voltou à casa de banho.
Lado a lado comparou as figuras de uma e outra foto e não teve mais dúvidas: uma e outra eram a mesma pessoa, apenas com uma diferença de setenta anos.Ali estava a tia Baez, renovada do sec. XXI, ainda estrela das artes da paixão.
Colou as fotos, uma junto à outra, uma dedicatória unica abrangendo os dois pedaços de papel, "Sempre te aguardo, hoje e daqui a cem anos".Fechou o álbum, passando a palma da mão numa carícia prolongada e sorriu, agora feliz por ter encontrado a sua cara-metade.
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(Fevereiro/2006)

2 comentários:

marisa disse...

Como gosto dos teus contos! O dia começou bem.
Um beijo
marisa

pin gente disse...

muito bem escrito. gostei imenso!
parabéns


abraço
luísa