A praga

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Teresa de Jesus passou as costas da mão esquerda pela testa limpando o suor, afastando os pensamentos sobre a filha única em idade casadoira, que quando ela se fosse, menos um par de braços para tratar da terra e dos animais, que isto é vida custosa e só à força do muito querer lá vai.
Para onde, Teresa de Jesus não sabe. Talvez nunca o tenha sabido, que de quando em vez sobe-lhe um fel e apertando muito a boca o consegue suster e engolir de novo para não bolsar um berro medonho que até a ela mete medo.
Levanta ao alto o sacho e vá de o cravar com força no torrão da terra que esta tem de ficar preparada ainda hoje.
E repete os movimentos de erguer e baixar a sachola, lutando contra as pedras que se lhe atravessam aos carreiros que faz, certos, verticais, medidos na sua memória pelo acto visto de seus pais e avós e estes dos outros que se lhes antecederam.
Estas são terras suas. Sem senhor ou favor, perdão ou condescendência, foram-lhe dadas pelo sangue e de tanto laborar já nelas encontra a sua carne.
Escorregou-lhe o lenço negro sobre os olhos: entala o cabo do sacho entre as pernas e tira a negrura que lhe cobre a cabeça vai para mais de dez anos quando o seu homem se finou; afaga o cabelo cinzento sufocado num aperto de carrapito entrançado e volta a poisar o lenço sobre a cabeça, cuidando para que se não veja réstia de cabelo. O rosto magro e tisnado franziu-se perante o sol impiedoso e de olhos fechados agarrou-se ao sacho e bateu na terra, corcunda e de passinhos pequenos, avançando lenta e obstinada na tarefa.
Terminou, por agora. Há ainda a forragem para levar à vaca que ainda sobra e o feijão para cozer para a janta.
De relance contou os carreiros abertos como linhas da vida, deitou a sachola ao ombro e num passo rápido afastou-se, as pernas magras e compridas conhecendo de cor e salteado o relevo do terreno, algum musgo em lugar sombrio, uma teia de aranha peluda amarela e negra, a fonte, o caminho íngreme até casa que a sua é a ultima da aldeia, lá mesmo num fundo e num alto.
Puxa o cordel de fora da porta e entra para o fresco escuro da casa. Agora que o sol não tarda em baixar é tempo de abrir as janelas e devolver a vida à casa vazia.
Troca as botas grossas pelos tamancos de pau, o pé rapilhando casa fora, vibra o louceiro, não há tempo para descanso: atira a lenha e uns gravetos, ateia-os com um bocado de papel que vinha a embrulhar umas sardinhas de salga, o atiçador espevita na lareira a pressa da sua sopa.
O cordel de fora puxa o fecho e Cremilde de Jesus entra pedindo a "bença, nha mãe".
Teresa acocorada com a panela escura de volta do lume não lhe responde, mexendo o toucinho para que haja pingo para o caldo.
Cremilde troca as botas e calça as taroicas, olha à sua volta e pergunta pelas maçãs.
- Quê? - atira-lhe Teresa.
- Nha mãe, as maçãs?! Vou apanhar um avental delas pra nós!
- Não tragas mais de quatro, rapariga! Olha que quero as boas para a venda de quinta no mercado!
- Sim, nha mãe!
-E toma tento, rapariga! Não te quero de conversa com o demo!
- Oh, nha mãe! Quando é que vai parar com isso?! É até pecado falar assim do vizinho!
Teresa de Jesus não disse mais nada. Manteve-se naquela posição dobrada, os joelhos roçando o queixo, o lenço negro a pender sobre o sobrolho.
- Como queira, nha mãe, já vou e já venho, então! - e bateu a porta, os tamancos pelo sobrado num passo rápido e vivo.
Cá fora as moscas zumbíam com o entardecer, a luz filtrada num amarelo rosado, a calidez do ar acariciando as faces escaldadas do dia.
Cremilde de Jesus galgou as terras acima da casa, apoiando as palmas das mãos nos joelhos conquistando o terreno à força de resvalar nos taroicos, boca aberta ao ar fresco do alto.
Olhou a macieira e cresceu-lhe uma água na boca: viu distintamente o riscado vermelho da fruta pendente na árvore, grande, gingada à esquerda sobre o muro de pedras amontoadas que dividia a terra de sua mãe da do vizinho João das Vacas.
Debaixo da árvore mirou aquelas bolas coloridas e sumarentas e lá no topo, as mais bonitas e brilhantes fizeram-na sorrir: ágil, pendurou-se numa ramada e dando balanço a uma perna atirou-se enroscando-se como uma cobra nos ramos de cima e depois, no outro, e de seguida as mãos fecharam-se para se agarrar às folhagens que soçobravam à esquerda, já do outro lado do muro de pedras. Abanando como um equilibrista tentou por-se de pé, mas um tamanco fugiu-lhe e foi caír no terreno alheio.
Mordeu o beiço já a pensar na recomendação da mãe e no receio de alguém aparecer e contar ao vizinho ou, quem sabe? o próprio João das Vacas surgir do nada.
Ficou ali, suspensa no acto e nos braços ao alto, um pé calçado outro nu a pensar o que fazer. Mas já que ali estava e se tinha dado ao trabalho da escalada mais valia que arrancasse as maçãs cobiçadas: a primeira entalou-a entre os dentes e sentiu um fio do suco a escapar-se pela comissura dos lábios, as outras quatro enfiou-as no bolso do avental florido.
Agachar-se foi tarefa tão dificil como tinha sido erguer-se e quando sentiu as coxas assentes na pernada que a sustinha largou de uma vez as ramadas das mãos ouvindo-se um silvo rasgando o ar e de seguida levou no cachaço com os ramos libertos. Perdeu o equilibrio, como se alguém a tivesse empurrado pelas costas e sentiu-se atirada para a frente, cuspindo a maçã que lhe entupia a boca. O instinto levou-lhe as mãos calejadas a agarrarem-se seguras a outro ramo e abanando, lá lhe caíu o outro tamanco, agora em terra sua. O saiote, a saia e o avental bojudo das maçãs armavam-se num balão, inchados pelo balanço do corpo, os pés nus a irem e virem,o lenço estava preso no carrapito e nas folhas. Sentía o pescoço a escaldar pela chicotada da árvore invadida e um bocado da casca riscada da maçã entalava-lhe a respiração ofegante do susto e da queda eminente. Começou a sentir as covas dos braços a esticarem e os braços a arderem da fricção nos ramos acima de si.
Abanou a cabeça, cuspiu a casca e pedindo ajuda ao "Senhor dos céus" atirou-se.
Caíu de nádegas e as maçãs saltaram-lhe do bolso do avental. Agradeceu ao seu protector com os olhos postos ao alto, benzeu-se numa pressa, apanhou a taroica de pau e num ápice galgou o muro divisório de pedra agarrando o par caído em terreno inimigo e na mesma correria fez o caminho inverso, agachando-se para apanhar apenas duas maçãs.
Largou-se caminho abaixo até casa, os chinelos de madeira presos numa mão, na outra os frutos proibidos, o cabelo escapando do carrapito desfeito e uma aflição tremenda a tomar-lhe o peito sobre as explicações que tería que prestar a sua mãe.
Puxou o cordel e escancarou a porta. Calçou os tamancos e soltou um suspiro de alívio, que sua mãe tinha ido levar a forragem à vaca.


Deitou água na bacia e passou as mãos molhadas pela cara e pelo cabelo. Foi então que notou que não tinha o lenço. Sentiu um rubor nas faces, levou novamente as mãos ao cabeça e tentou lembrar-se o que tería acontecido. O espelho na sua frente mostrava os braços vergastados dos pulsos até aos cotovelos. Virou-se tentando ver o pescoço e de onde lhe vinha tamanho ardor: assustou-se quando viu uma gola vermelha de sangue à flor da pele a rodear junto ao carrapito. Desmanchou o que restava do penteado e passou o pente à bruta, desfiando os nós de cabelo e restos de casca de macieira. De seguida entrançou com mãos ágeis e com os cabelos perdidos no pente fechou a trança grossa que lhe pendía até à cinta.
Teresa de Jesus entrou, os olhos afiados para a filha.
- Bença, nha mãe!
- Anda comer.
Cremilde dispôs dois pratos de sopa sobre a mesa de madeira, duas colheres, desembrulhou a broa do linho do pano e ficou de pé esperando que Teresa de Jesus terminasse de lavar o rosto, o pescoço, os braços e as mãos. Viu-a tirar o lenço negro e compor o rolo entrançado do carrapito. Lembrou-se do seu lenço desaparecido e o coração disparou-lhe.
- Que foi, rapariga? Que tens? - atirou-lhe Teresa inquisidora.
- Nada, nha mãe, nada...Tenho fome! Vamos comer, nha mãe!
Teresa de Jesus olhou-a de alto a baixo e esticou o braço a pedir os pratos. Serviu o caldo farto e sentou-se. Só depois, Cremilde de Jesus tomou o lugar à mesa, persignou-se e pegou na colher animada pelo cheiro da sopa. Levou a primeira colherada à boca, partiu um bocado de broa e migou-a para o caldo, afogando os pedaços entre o toucinho, as couves, o feijão e as batatas.
- Qu'é do teu lenço? - perguntou Teresa de Jesus sem levantar os olhos do prato fundo.
Cremilde de Jesus embuchou, a boca cheia da broa embebida, o medo da verdade, o pânico da mentira. O silêncio tombou sobre a mesa fazendo-lhe arder ainda mais o vergão no pescoço. Não foi capaz de emitir um som que fosse, um único movimento que evidenciasse que estava ali e viva.
Teresa de Jesus meteu a mão ao bolso do seu avental e tirou o lenço florido e com um rasgão.
Com uma pancada seca deitou-o sobre a mesa. Cremilde de Jesus assustou-se dando um pulo na cadeira mas conhecendo sua mãe, manteve-se muda à espera do castigo.
Teresa levantou-se, chegou um fósforo ao candeeiro de petróleo e pousou-o sobre a mesa. Depois, junto à lareira, agora morrinha, encheu um púcaro de esmalte de café batido e aromático. Sentou-se e amarrecada como se continuasse a abrir sulcos na terra, beberricou o café escaldante.
- Que te disse eu sobre o demo?! Não te avisei que não te quería daquele lado? Que queres tu?! Desgraçar-nos de vez? Não chega aquele maldito ter-nos levado as vacas?
Cremilde de Jesus ía abrir a boca para se justificar mas Teresa ainda não tinha terminado.
- Sabes onde apanhei o teu lenço? Nas terras do maldito! Se eu não estivesse por perto... E esse pescoço, e esses braços? Podias ter partido a espinha, rapariga! Queres tu dar-me mais aflições que as que já tenho?! Desde que o teu pai se foi, tu sabes como tem sido a nossa vida... - perdeu o fôlego para continuar a reprimenda.
Recordou-se dos braços fortes do seu homem a abrirem regos por onde passava fértil a água que molhava os campos. Fechou os punhos e os olhos ao rever-se a entregar à vez e à necessidade, as vacas ao João das Vacas. Naquele tempo, a filha pequena de cinco anos não tinha valia e ela sózinha não tinha braços suficientes para trabalhar todas as terras nem puxar os veios da água para os terrenos que agora estavam rasos de erva sem préstimo. Engoliu o orgulho e pediu ajuda ao João das Vacas que sempre tinha sido companheiro do seu homem.
- Perdão, minha mãe, perdão, perdão, perdão! - repetía Cremilde de Jesus de mãos postas e ajoelhada perto de Teresa.
- Vai-te deitar. E leva o teu lenço.
- Bença, nha mãe! - Cremilde ergueu-se, deitou a mão ao lenço rasgado e despareceu levando o candeeiro de petróleo consigo.
Teresa de Jesus ficou apenas alumiada pelas brasas incandescentes da lareira, voltou ao púcaro de café que encheu de novo e sentiu o fel subir-lhe pelas entranhas até ao grito, que mais uma vez apertou na boca.
Tinha nos braços e no peito aquele nojo das mãos do João das Vacas a tentar agarrá-la, apertá-la nos seios e na boca como paga do seu pedido. O ódio tomou-a toda, a forquilha de serviço à forragem da vacaria interpôs-se entre os dois e como ele se risse dela, Teresa de Jesus sentiu a força para avançar para ele e o espetar com os dentes afiados. Depois chamou-lhe maldito e sentiu-se bem quando viu que João das Vacas sangrava do bojo saído e gritava como um porco no dia em que lhe espetam a faca. Deu consigo a fugir, a correr pelo campo fora e a gritar maldito, o lenço escapou-se-lhe na fuga, o carrapito desenrolou-se e a trança negra até aos joelhos chicoteava-lhe as costas dando-lhe o ânimo para subir até casa.
Pegou no atiçador e espevitou o lume que largou umas faúlhas vermelhas e brilhantes.
Acocorou-se sentindo no rosto magro o calor das brasas e da raiva.
Na aldeia achavam-na louca por ter perdido o seu homem; era por isso que o tino se fora e tinha picado o João das Vacas; era por isso que tinha deixado de ir à missa e se tinha tornado bruxa; era por isso que era de poucas falas; era por isso que sua filha ainda não tinha arranjado namoro, que ninguém quer uma sogra que é bruxa e que pica os vizinhos.
Teresa de Jesus atira com a pinga de café que resta no púcaro de esmalte para o lume fazendo-o chiar.
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O galo cantou, o dia prestes a nascer fez Teresa de Jesus levantar-se.
Outro dia, outra terra para abrir covas, forragem de novo para a vaca que restava entre as que tinha pago a João das Vacas para os buracos que lhe abrira na barriga e o tinham deixado sem trabalhar durante muito tempo. As maçãs para colher, que amanha será dia de mercado e algum dinheiro é preciso para comprar umas sardinhas de salga e, talvez, um lenço novo para a rapariga.
O som da água fria a caír na bacia acordou Cremilde de Jesus.
- Caminha que não tenho vagar de ficar aqui o dia inteiro! Acorda, rapariga! - e Teresa de Jesus esboroava no café muito adoçado uns bocados de broa, a tijela quase a verter.
Comeram de pé, embrulhou uma chouriça puxada do varal acima da lareira num pano de linho e juntou-lhe o resto da broa. Ajeitou o lenço negro e puxou o cordel batendo a porta.
Pelo caminho a passarada numa chilreante alegria, as duas mudas, Cremilde de Jesus mais atrás roendo azedas e apertando entre os beiços fitas de erva que emitem assobios estridentes, Teresa armada de duas sacholas ao ombro, o farnel a bater nas pernas dentro do bolso do avental.
Chegam às terras e começam a revolver, a puxar, a levantar ao alto a sachola e a ferir os torrões, par a par, corcundas e erectas, dobra e endireita num movimento ritmado, as duas de inicio, pouco depois, Cremilde de Jesus a ficar para trás, a distraír-se com coisa nenhuma, a cantar, a parar e a olhar o céu que agora o sol está alto.
O dia está quente.
Os riscos na terra ficaram para trás que esta está acabada, agora é partir para a macieira, sempre a subir. Na volta é que é bom, já perto de casa e a descer.
Teresa de Jesus quer comer agora, à sombra da sua macieira, as costas apoiadas no tronco forte da árvore, colher duas maçãs para matar a sede do sol e do salgado da chouriça. Apetece-lhe fechar os olhos e dormir e sonhar.
Cremilde de Jesus baloiça-se numa ramada, os pés ao dependuro para cá e para lá.
Uma pedra bate no tronco da macieira e Teresa de Jesus sobressaltada levanta-se e dá um puxão no pé da filha.
João das Vacas do outro lado do muro ri-se zombeiro.
Cremilde pôs-se ao reguardo das costas da mãe e começa a rezar uma ladaínha.
- Que queres, maldito? Vai-te demo! - cospe-lhe Teresa de Jesus.
- Hoje como as duas e de caminho as tuas maçãs, bruxa! - disse João das Vacas alçando a perna para passar o muro.
Teresa de Jesus armou-se da sachola e ameaça-o:
- Não te chegou, maldito? Desta vez racho-te a cabeça, maldito! Não te chegues demónio!
João das Vacas passou para o lado da macieira e avança devagar, a barriga bamboleando de um lado para o outro, um riso posto no carão vermelho.
Cremilde de Jesus ora e chora abraçada à cintura de sua mãe, escondida nas costas desta.
Teresa sente o fel a subir-lhe. Sente que hoje não vai apertar a boca e vai deixá-lo saír à vontade.
João das Vacas prossegue lento para Teresa de Jesus, de braços esticados para a apanhar.
Teresa de Jesus abre a boca.
- Que seques como uma ameixa ao sol, mirrado e encolhido, comido por dentro e vazio em pó!
João das Vacas estacou, sentiu uma dor no abdómen, depois no coração, logo seguida de outra nas partes pudendas. Cai de quatro e silva como um balão a esvaziar, os olhos esbugalhados, a boca aberta exibindo alguns dentes, a lingua roxa.
Cremilde de Jesus benze-se. O céu ficou sem sol de repente. O lenço negro de Teresa de Jesus caíu ao chão. João das Vacas põe-se nos joelhos, chupado, sugado da vida, encolhido pela metade, a carne seca e engelhada junto ao osso.
Teresa de Jesus apanha uma maçã tombada e bichosa. Agarra a larva branca e atira-a a João das Vacas.
Depois dá a mão à filha e descem devagar o caminho até casa.
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(Maio/2006)

3 comentários:

o Reverso disse...

fidável.

fez-me voltar aos meus tempos de miúdo e adolescente.
o ambiente que descreves é perfeito e a descrição das pessoas também.
muito, muito bom.

um beijo

o Reverso disse...

li novamente, e olha que, nos blogues, não gosto de ler textos muito longo.
está fabuloso.

marisa disse...

Uma belíssima história de bruxas (tu sabes que eu gosto delas). A linguagem é fantástica.
Que bom deixares-nos ter de novo acesso às tuas histórias. Obrigada.
marisa