A escadaria









Para a maioria era apenas caminho de atalho, para outros sitio de evitar, para uns quantos o local ideal para os beijos roubados e outros sentires mais afoitos, para os mais velhos uma cruz penosa quer de subir quer a tormenta de a descer, mas para ela quer houvesse sol ou frio, luz de dia ou candeeiro de lampada partida a alumiar coisa nenhuma, sempre lhe acharía novidade e beleza que a fizesse voltar.

Talvez que o gosto lhe tivesse aparecido ainda na barriga da mãe, que ao sacudir uma abelha insistente e perseguidora numa tarde de Verão, aos rebolões havía descido os 217 degraus, e no seu remate se havía erguido nas pernas erecta e rija para grande espanto de todos quantos acorreram escadaria abaixo, tentando travar-lhe a descida ensandecida. E nem um arranhão sofrera. Só depois uma abelha veio e a picou na orelha, o que lhe fez soltar um berro enorme.

Mas pode a causa ter sido a tia, que tinha uma cadela de porte grande como um cavalo e a punha de montaria na Negra quando ainda era criança de perna curta. Quando subíam a escadaría, a tia cantava, era tudo inventado, sons da garganta como pedidos de socorro, sem palavras, mas muito bonito, tudo se calava ao redor, nem os pássaros bulíam com a voz dela. Quando descíam, a tia assobiava e era tudo no mesmo tom fervoroso de quem pede uma benção. E ela montada na cadela Negra, agarrada aos pelos do pescoço, certa da segurança de chegar ao destino.

Depois, havía aquela prima muito alta com corpo de homem, cara de homem e olhos tão bonitos que quase não se conseguía olhar para eles de vergonha. Tinha muita força. Metía muito medo a quase toda a gente, incluíndo a ela. Mas nas tardes de muito calor, quando os joelhos parecíam custar a dobrar para subir os degraus de pedra já gasta pelo tempo, o medo ía-se e sabía tão bem ser do tamanho das árvores: A prima içava-a para os seus ombros e conquistava o íngreme com uma facilidade de um gigante perto do céu.

Sempre que se sentava nos degraus da escadaria recordava cada uma destas mulheres, tentava apurar o que cada uma delas havía contribuído de seu para o gosto daquele lugar. Não chegava a conclusão nenhuma sobre qual mais a tinha influenciado. Até pensar na sua avó, nas pequenas histórias que a sua avó recitava, de umas vezes na escadaria, de outras longe dela mas sempre a seu propósito, revelações que nem sempre entendera na altura pela crueza da idade, mas também pelo susto que por vezes tais palavras arrastavam no entendimento quando maior, se percebía o peso da herança do conhecimento a quem passava.

Aos 17 anos começou a passar para o papel tudo o que sabía sobre a escadaria. Tudo o que havía ouvido transformou em letras e transferiu para papéis com medo que o tempo lhe apagasse as palavras da memória.
Foi então que descobriu, que nada havía sido feito. Que tudo o que havía escrito eram apenas reproduções de coisas de outros. Melhor, de outras, não havía homens nestes relatos, só coisas no feminino, algo invulgar, pois que para haver mais de fêmea logicamente terá de haver lugar ao macho.
Pesquisou e em tempo algum, descobriu nome, referência, sombra que fosse, de seu pai, avô, tio ou primo, nem afastados. E por onde andara ela todos estes anos que nunca se perguntara de onde viera, onde estavam os homens da familia, para onde partira o seu pai?

Buscou junto da avó e esta falou-lhe da escadaria, que a resposta era a escadaria, mas o enigma não a satisfez e na insistência tanto a aborreceu que a velha agarrou-lhe a mão e ofereceu-lhe uma chave. Da chave, abriu-se uma caixa e da caixa saíram papéis. E esses papéis eram tão iguais aos que ela já havía escrito para que a memória da vida não a atraiçoasse com a memória dos sonhos, que ela pensou que estava louca e quis fugir para bem longe dali.

Correu muito, mesmo muito e foi dar ao último degrau da escadaria.

Sentou-se ofegante. O dia deslizava devagar, um e outro par de namorados de mão dada passava por ela sem a notar, um cheiro morno e adoçicado pousava à espera do fecho da luz.
De costas, junto às pedras do muro que se escondíam para lá dos fetos que dormíam à neblina do serrado, foi fazendo canudos muito apertados das folhas que escrevera durantes anos e um a um, escondeu-os nessa cama fria, húmida e rochosa. Fez desaparecer as folhas por cada fresta de pedra que conseguiu passar, as que restaram enfiou no último degrau da escadaria, a custo, parecía-lhe entupido, cheio, pleno e ao invés de o preencher, acabou por o espreitar e a escarafunchar e a descobrir folhas e fotografias.

Tombou a noite no repente como uma queda e assim sentiu na costas qualquer coisa que lhe havía tocado, caiu-lhe das mãos as fotografias de homens e também algumas cartas que começavam por minha querida e outros papéis com datas muito antigas que falavam da construção de uma escada e de uma contenda por causa de um curso de água e uma disputa entre vizinhos.





Fotografia oferecida por Eduardo Jorge Silva

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