A culpa

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Pé ante pé, devagar, primeiro a pousar o calcanhar e só depois a restante sola, fez-se chegar à porta. Quase conseguía ouvir o bater do seu próprio coração, martelado, cada vez mais alto, mais possante, depois tomou-lhe a nuca, as orelhas, sentiu-as escaldantes, toda a raíz do cabelo se desenhou num risco só como se  aberta por um abre-latas. Dobrou-se, engoliu o cuspo que lhe crescía na boca, ajeitou a mira do olho ao buraco da fechadura.
Nada.
A íris rodou à procura, focou, afastou-se, rodou de novo, a respiração acelerou-se e a ponta das orelhas gelaram-se-lhe, nada, o olho insistente comprimido contra o aço da fechadura, um ar frio e fino daí a desprender-se e a furar a retina como uma agulha de anestesia, agora já de joelhos, uma corcunda, as duas palmas de batráqueo em leque na madeira da portada e o olho incansável, penetrador, violador, até que por fim, descobridor. Do lado de lá, um outro olho colado à fechadura da porta.
Luís gritou num berro histérico e Mariana, surpreendida pelo grito de Luís e assustada pelo olho, ginchou tão alto que o gato que dormitava em cima do jornal desapareceu, atirando ao chão na sua fuga, todas as revistas que se amontoavam em cima da mesinha de café.
Luís gargalhava de boca escancarada e dava palmadas no joelho.
- Estes gajos são uma bosta! Já estava mesmo a ver que só podía ser isto!
- Grande estúpido!!!
- Estúpido eu?! Estúpidos são estes gajos que fazem estes filmes! Não têm imaginação nenhuma!
- Grande estúpido!!!
- Eu já sabía que era um olho que ía aparecer do outro lado! Só podía ser! Só gritei para ver se animava isto!
- Grande estúpido!
- Ouve lá... acaba lá com isso que já me chamaste estúpido quantas vezes...
- Estúpido estúpido estúpido! Pronto!!! Queres mais?
- Vou-me embora! Olha que eu vou-me embora!
- Vai! Se é para me tentares matar é melhores ires antes que consigas!
- Matar? Mas este filme mata alguém? Isto é uma porcaria, melhor faría eu!
- Claro! Sua excelência é sempre melhor em tudo! Até a tentar matar a namorada! Estúpido!
- Ok! Agora chega! É de vez, bazo!
Luís agarrou no DVD e saíu. Bateu com a porta. Mariana ouviu o som do elevador a subir, o ruído metálico parecido com um soluço a anunciar a chegada ao piso, o som a descer. Atirou-se para o sofá. Depois ergueu-se e apanhou as revistas, endireitou-as, pensou que tinha que fazer uma escolha e deitar a maior parte ao lixo, pousou-as sobre a mesinha, voltou ao sofá, recolheu as pernas, massajou os dedos dos pés, suspirou muito, pensou em vingança, pensou no filme que acabara por não ver e nem saber quem estava do outro lado da porta. Tão só um olho. Um olho. O que é um olho sem o par? Sem o rosto, o corpo, o seu dono? Aborreceu-se. Voltou a pensar em vingar-se de Luís pelo susto que lhe infligira, depois ficou aborrecida consigo mesma por se ter comportado de forma tão infantil, com tamanho grito, que muito provavelmente iría ser tema da próxima reunião de condominio. Chamou o gato mas ele não veio. Sentiu-se mole, cansada, as pálpebras pesadas, pareceu-lhe um esforço hérculeo arrastar-se dali para o quarto, despir-se, deitar-se na cama, talvez esperar cinco minutos que aquela fraqueza lhe passasse. Fechou os olhos.
Acordou sobressaltada com o som da campainha, o coração desassossegado, a cabeça tonta sem tomar tino onde estava, o gato por cima da sua barriga arrancou cravando-lhe as garras para a impulsão do salto. E sempre a campainha sem parar, o dedo em cima colado. Espreitou pelo olho mágico e recuou que estava do outro lado um olho humano ampliado encostado à lente.
- Abre que sou eu!
Mariana agarrada ao peito e à barriga abriu a porta. Luís entrou às gargalhadas.
- Então agora não me chamas estúpido? Vá lá confessa! Agora estive bem! Não estavas à espera!
Mariana não conseguía articular uma palavra, quería mas não conseguía, parecia que tinha um nó na lingua, na garganta, quería chorar mas nem uma gota salgada para amostra, a sala rodava, ondulava, ficava escura aos poucos e de repente, foi o nada.
Luís olhou para Mariana caída no chão e ficou paralisado. Engoliu e não tinha nada para engolir. O gato apareceu e veio roçar o dorso e a cauda pelas pernas de Luís, depois foi cheirar o rosto de Mariana, a boca semi-aberta, o pescoço, a orelha esquerda, deu uma corridinha como se não tivesse gostado. Mas regressou. Acercou-se da dona, dos pés, trincou levemente o dedo grande, trepou-lhe pelas pernas até à barriga onde intensamente colou o focinho. O peso do corpo do felino sobre a roupa fez emergir o sangue dos cortes, Luís levou as mãos à cabeça.
- Ai meu deus!
E ficou nessa pose de estátua plantado no meio da sala até o gato desaparecer de novo numa das suas disparadas corridas. Sentiu que alguém o observava, sentía-o na nuca como uma chicotada, virou-se devagar, pé ante pé, primeiro o calcanhar e só depois a restante sola. De respiração presa a custo espreitou pelo olho mágico.
E do outro lado empurraram a porta que tinha ficado esquecida por fechar.
Luís caiu de costas mas rápido se levantou. Na sua frente, um homem de estatura baixa e roupão de xadrez com as mangas demasiado compridas para o seu tamanho, olhou-o profundamente e em silêncio.
Luís gaguejava apontando para Mariana no chão, e explicava atabalhoadamente tudo o que não lhe tinha sido perguntado, falava alto, gesticulava muito, ora rodando a cabeça no sentido da namorada ora no sentido do homem de roupão de xadrez, que se mantinha em silêncio e sem deixar de o fitar.
Por fim desistiu da argumentação e em passo acelerado abandonou o local, carregou no botão para chamar o elevador mas decidiu-se a deixar o sitio pelas escadas de serviço.
O homem de roupão de xadrez entrou, ajoelhou junto de Mariana, levantou-lhe a cabeça, colocou dois dedos junto à jugular, sorriu, pegou-lhe nos braços e arrastou-a até ao sofá. Finalmente, depositou-a aí garantindo que se encontrava numa posição confortável. Abriu-lhe uma das pálpebras e espreitou a sua reacção.
Mas o susto foi grande e o grito mais sonoro ainda. De ambos. Em uníssono.
- Sr. Alfredo! Mas o que é que está aqui a fazer?
- Eu vim por causa do barulho, sabe, é que já não são horas de se fazer tanto barulho...
- E o olho?
- O olho?
- O filme, o olho, o Luís...
- A menina tem de descansar, depois do trauma com o seu namorado...
- Ah... Mas o Sr. Alfredo já sabe?
- Se já sei??? Eu vi! Eu estava presente! Do outro lado da porta!
- Viu?
- Quer dizer...não vi bem, mas deve ter sido quando ele lhe bateu... e a menina desmaiou.
- Pois foi Sr. Alfredo, pois foi, foi isso mesmo, tal e qual o senhor viu...

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