O regresso

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Nessa noite não pregou olho. Voltava-lhe tudo à memória em vagas ora quentes ora frias, consoante a ansiedade ou a felicidade lhe tomavam espaço.

Lembrava-se de tudo com nitidez, dos cheiros, dos sons, da boca seca, da pele arrepiada.

Voltar. Voltar à azáfama do antigamente, da correria velada, do tremor nas pernas, da paixão que lhe tirava o tino dos pés do chão, voltar a morrer por cada vez que subisse ao palco, voltar a sentir medo de se esquecer das linhas, voltar ao improviso da vida em meia dúzia de minutos quando a cabeça falhava e o coração desatado compunha palavras na sua boca que os outros engoliam como certas, as mais certas aliás.


Quando subiu ao palco a primeira coisa que fez depois de o pisar com o pé direito foi apalpar as cortinas, sentir-lhes a macieza e o peso dos anos, a absorção de muitas noites agora misturadas com um travo de naftalina. Afastou uma fresta e bateu-lhe na cara a plateia vazia. Fechou os olhos, encheu-a de gente anónima que de pé estalaram recordações e disse para si obrigado, obrigado e o som do bis encheu-lhe a barba rala e branca de um sorriso.

Quem o visse decerto acharia que chorava, ou que se entristecera, ou que tonto da idade espreitava o que não havia. Mas não, era só o brilho das luzes a reflectirem anos e mais anos a gastarem o cénico, as pancadinhas, as palavras supersticiosas, o gole de aguardente para enganar o frio do estômago, a troca de roupa no intervalo fumarento entre a pergunta da praxe sobre a bilheteira.


Chamaram-no: Se sabia o que fazer, onde se deveria resguardar enquanto os actores trabalhavam, a velocidade ao puxar o cordame para a abertura das cortinas, a atenção ao texto para o final dos actos.

Sabia, sabia tudo, apesar desta ser uma estreia nesse papel.



(Dezembro/2008)

2 comentários:

marisa disse...

Adoro ler os teus contos, sei que me repito, mas não me canso de o dizer e penso que também não te importas de o ouvir.
Com tão poucas palavras, mas tão bem escolhidas dizes tanto... fico com a sensação de ter lido um livro inteiro!
Um beijo da leitora agradecida
marisa

pin gente disse...

muito bonito...
apetece-me dizer "velhos são os trapos"

perdoa-me a ausência
beijos
luísa