As Solistas

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Palmas. Palmas. E mais palmas. Tantas quantas se quiserem ouvir a estalar, se merecer escutar na noite escura das insónias sem fim à vista quando o quarto se fechar no reduto do suspiro desesperado de que o sonho é dos outros. Palmas tantas e tão quentes como vivas num dia de sol, chapéus arremessados ao passar dos sorrisos brancos da alegria, sonhos bons, sonhos bons, sonhos bons.

Se encontrarem o meu caderno não mo devolvam. É lá que está escrito As solistas. É nele que escrevi que ainda acredito que o sonho é a minha companhia, as minhas palmas, o meu dia. Se acharem o meu caderno, por favor escrevam nele qualquer coisa, mas não o vosso nome, qualquer coisa bonita e façam por perdê-lo de novo. Alguém o há-de achar. Talvez aplauda. Talvez sinta que é dele, dela. Para si as palmas, os sonhos bons, o palco. Que todos nós, por uma única vez que aconteça, seremos figura de cartaz.



AS SOLISTAS

Um frio dos diabos. Se é que o frio pode alguma vez ser de sitio tão quente como se fala do demo, mas das contradições se verá que toda a vida é fabricada, uma artimanha urdida perto dos olhos que não permite distinguir onde os nós começam e assim se pensa levemente que é a vida, apenas isso, a vida, aceita-se e por isso ele aceitou o frio como sendo do Inverno, tremeu, encolheu-se e acelerou o passo até onde a artrose do joelho esquerdo lhe permitia. Estacou-lhe o andar manco o edifício novo do teatro municipal, azul agreste, desorganizado nas formas, irregular na geometria, bicudo ao olhar, mas franqueado na segurança que logo entrou, o calor apetecível de um tapete traiçoeiro de tufos que se prendíam nas biqueiras dos sapatos, ou sería no membro coxo que se atrasava. Silêncio. Nem uma tosse se ouvía. E ele, ladrão de entradas, gatuno de calores alheios, já endireitava a espinha quando sentiu os passos em chão de mármore obviamente sem a trama do tapete fofo que lhe permitiu a fuga para uma porta escura que lhe lembrou as de um navio.
Era escuro como breu.
E ao fundo a luz.
Ergueram-se como estátuas longilíneas e um coro afinado de palmas encheu a sala a pique.
Ele encostou-se à parede, depois agachou-se à medida que os outros se sentaram. Lá embaixo, as solistas tomaram assento, folhearam pautas, afinaram instrumentos, fizeram um leve gesto de cabeça entre si.
E a este sinal de combinação, o olhar cúmplice, a respiração presa no mesmo tempo, toda a sala parou. Dois violinos, uma viola e um contrabaixo. E ele de cócoras, as pernas já dormentes, a artrose a arder de dor, o medo de ser apanhado pelos passos de quem não chegara a ver, a vergonha de ser levado pelas luzes acesas a cegá-lo na escuridão. É a contradição, é a vida, é o frio e o calor, é o inferno, é a vida.
Mas é também a música, e os violinos a beijarem o vibratto no ar, as melenas das solistas de um lado para o outro, o decote da viola que decentemente se descomposta e alicia no desafio da vaidade do violino, pequeno violino que brinca com o rezingão do contrabaixo sempre sério, sempre grave.
Sentou-se. As pernas já não doem. Gatinhou de rabo como fazem as crianças na aprendizagem do andar até aos degraus. Mais uma contradição, dada a sua nobre idade, e aí ficou até que as palmas vieram de novo e se suspenderam a um sinal da solista da viola que levantou a mão como se saudasse Adolf revisitado na platéia e a platéia calou-se de imediato e ele não gostou.
Os olhos calejados do escuro detectaram um poiso, e corajoso içou o corpo dobrado e guiado pelas letrinhas luminosas indicadoras dos lugares atirou-se para a cadeira solitária e erma da ponta da fila. Refastelou-se. Tamborilou os dedos nos braços do assento. Bateu o pé ao compasso do contrabaixo. Esfregou o joelho esquerdo. Cruzou as mãos sobre o ventre.
O olhar da viola não o intimidou, já havía conhecido o inferno do frio não era agora que uma loira gélida e ariana lhe iría afugentar da soberania que havía conquistado sobre o coliseu do teatro. Era azul pois, azul por fora, como era o olhar dela, tudo azul como águas frias que enganam pela sua limpidez, estava explicado o tom da sua musica, aqueles repiques agudos ao som garrido dos violinos, sempre alegres e sorridentes. Ou tristes, honestamente tristes, sangrentamente tristes, um tudo ou nada, mas sempre envolventes, ele próprio um violino, ele mesmo confesso um homem aberto a grandes paixões!
E sentía-se devotamente, irremediavelmente perdido de amores pela solista do violino.
Agora só tinha de decidir qual das duas... a morena ou a ruiva?
Que dilema! Que contradição!!! Pois se está de amores terá de haver escolha?! Oh pena capital para quem fez tal vida miserável de sim ou não, entre quero e não quero, entre colher e morrer à sede!!!
Ruge baixo, solene, vai subindo o tom, grave, piu forte, não há vergonha, que sentido dar ao verbo, vocifera o contrabaixo, e ele apoquentado, deslumbra-se no dedilhar das cordas que lhe lembram sítios fumarentos de acordes de jazz, enrosca-se nas pernas da solista e pede auxilio para o desempate, que tudo é coisa do demo, a viola e os violinos são uma partitura menor, claves de sol só uma, contrabaixo...
Palmas, palmas, tantas palmas até ensurdecer, ranger de violinos como uma serração a pleno labor, a viola puxada a cordas como cabos de navios e ele de gatas, fugitivo entre tapetes de tufos mais altos que a floresta tropical devassada a passos que não se vêem mas se ouvem como palmas, palmas, mais palmas.
Todos de pé, bravo, tantos, uma ovação que faz derreter o azul e adoça o geométrico bicudo, ele a meio do sobrado do palco de braços a cristo recebe o teatro, o publico, as solistas, tudo lhe é.
Abre os olhos cego da luz da lanterna.
- Pai! Quantas vezes já lhe disse que não pode vir para aqui? Que isto é perigoso?
- Perigoso?
- Isto está a cair!!! E não volte a desaparecer!!! Vamos embora! Com este frio ainda apanha uma pneumonia!
- Mas tu não sabes? As solistas! Elas estão cá!
- Que solistas? O pai voltou a adormecer aqui! Que mania de voltar sempre aqui!
Pai e filho saíram de braço dado. O vento fininho soprava nas orelhas. Um frio dos diabos, disse o filho. Alguns papéis levantaram-se. Um deles era a anunciar para breve o concerto das quatro solistas.

4 comentários:

marisa disse...

Querida Gasolina,
Descobri hoje mais uma bela história tua.
Espero que esteja tudo bem contigo e a tua escrita da qual tenho saudades.
Beijos
marisa

C.G. disse...

Querida Marisa,

Saudades, saudades. Tanta.
Tudo bem comigo, espero que contigo também.
Aos poucos o regresso à luz do dia, ainda com passos pequeninos, muitas folhas a soltarem-se-me entre dedos.

Beijo e abraço apertado.

o Reverso disse...

neste momento estou podre de sono.

amanh, com capacidade para absorver o que escreveste, volto...

o Reverso disse...

hoje reli.

não vou ler o de cima já. virei ler depois. hoje quero ir mais uma vez com este. gostei muito (não é comentário que se faça, gostei muito e pronto, mais nada!?)

mas sim, gostei muito. não só do que contas mas também da maneira como contas.

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