O barbeiro


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Era negócio de família, o seu bisavô herdara-o e fora-o passando às gerações que lhe seguiram, que felizmente sempre tinham havido homens em linha directa de sucessão para lhe seguir no distinto mister das artes de barba e cabelo.
Pratas de apelido, José de baptismo, todos eles em conformidade com a placa que alindava o respeitável estabelecimento na rua principal, alvo de cobiça dos demais barbeiros da região mas também de outros comerciantes, já que a localização tão ao redor dos serviços camarários permitia o aconchego rápido aos favores do Senhor Presidente e o primeiro a saber de todas as novidades.
Mas José Pratas último, apesar de todo este bafo de sorte era um homem triste.
Casado com Esmeralda ía para três anos, nem varão nem menina, pois a esposa não embuchava de maneira nenhuma e não tardou, como bom barbeiro que era, o seu ouvido cristalino começou a detectar as primeiras insinuações entre a clientela que aos sussurros enquanto aguardava a vez para o corte de cabelo e se entretinha com o jogo do final da semana, trocava piadolas sobre a macheza do Pratas.
De inicio tentou ignorar, deu volume ao transistor e abafou a quadrilhice, aqueceu demasiado as toalhas e escaldou a cara do que tinha desencadeado a conversa. De outra vez, amolou a navalha com ar ameaçador e a coisa ficou por ali.
Mas como o tempo passava e nada de barriga cheia, lá voltavam as anedotas e um dia o José Pratas Pai chamou o José Pratas Filho e a conversa afiou-se mais que na barbearia.
Havía que pôr termo a tanta maldicência, pior que tinha fundamento! Que fazíam eles?! Que esperavam eles?! Acabar com o negócio?! Tantas gerações para trás a elevar o nome Pratas e chegar agora aqui e parar?! Nem pensar!!! Tratassem logo do assunto de uma vez, que a Mãe iría falar com Esmeralda por seu lado para nada ficar por falar!
José Pratas Filho tremeu, segurou-se à bata branca e sentiu as mãos suadas.
Depois abriu muitos os olhos e pálido encarou o pai:
- E... E se me nasce uma menina?
José Pratas Pai quase se desiquilibrou mas manteve a postura em silêncio, cofiou o bigode, enfiou as mãos nas algibeiras e por fim respondeu baixo entre dentes:
- Um problema de cada vez.



Esmeralda chorava que se fartava, quase nem conseguía falar, era daqueles choros baixinho de bater os dentes, queixinho a tremer, olhos vermelhos, cara opada, o lenço colado a amparar o ranho. E a sogra de mãos cruzadas com o biscoito preso entre as unhas do polegar e do indicador, ía falando e trincando e balançando o corpanzil enorme, à medida que lhe enrolava o tapete com os tacões dos sapatos que parecíam tão apertados nos peitos dos pés inchados.
- Oh filha se tiveres sorte ficas despachada à primeira como eu! Só tive o Josézito e pronto! Já está! Ninguém te obriga a mais nada filha! Se tiveres sorte só tens de aguentar uma vez e pronto! Ninguém te pede mais nada filha! Agora assim é que não pode ser tens de compreender filha ! Isto não é bom para o negócio! E não sendo bom para o negócio não é bom para nós! Não é bom para ti filha!
- Mas ele não quer!
- Ele? Ele quem? Tu estás a ouvir o que digo filha? Pobrezinha estás com medo!
- Ele não me quer! Ele não se quer deitar comigo! Percebe?
- Que é que tu dizes?
- Que ele nunca se deitou comigo!!!
- Tu cala-te! Não digas mais nada que ainda te ouvem!
- Pois que me ouçam que eu não aguento mais esta mentira!
- Estás doida?! Perdeste o juízo mulher? Cala-te agora!
- É verdade! Ele nunca se deitou comigo, nem no dia em que casámos, nunca me quis, nunca me quis ver nua, estes peitos, isto que tenho entre pernas, este fogo, tudo isto que me acaba, não aguento mais!
- Cala-te mulher que te ouvem! Ai meu Deus! Não é verdade...



José Pratas vomitou o que não tinha no estômago. Já dera de si o que de si era. Sentía repugnângia, nojo, asco. Olhou-se no espelho e sentiu-se envergonhado. Nem sabía de quê, de quem, se de si agora, se de si do que fora, se de si do que a partir de agora passaría a representar. Sentiu-se sem pele. Sentiu medo de si, deixou de sentir medo do pai.



O baptizado de José Pratas foi uma enorme festa que teve lugar nos salões da Câmara, com a presença dos mais conceituados membros da sociedade, muita comida, muita bebida, muito discurso, muita alusão a tão demorada fabricação de tão ilustre herdeiro mas que finalmente e tal qual obra de arte, os artesãos tinham-se esmerado. E mais, a população podía descansar, pois as exuberâncias capilares masculinas tinham bom destino, havía continuidade nos Pratas. Aplausos. Mais aplausos. Até Esmeralda ria, sorría, acenava, estava bonita, flirtava, exibía os seios ainda cheios de algum leite a sobrar. A sogra comia e balançava-se, falava e vigia Esmeralda. José Pratas Pai acompanhava José Pratas Filho na sala e tudo seguía como o figurino. No final do dia e já com as mentes dilatadas por tanto alcool, a etiqueta abrandou, os coletes desapertaram-se, o bébé Pratas recolhera a casa com a mãe para a mamada e José Pratas de copo na mão fitava o infinito. Sentiu que alguém estava perto mas nem se incomodou a reparar quem.
- Foi uma bela festa, parabéns!
- Obrigado.
- Um brinde!
- Tenho o meu copo cheio, obrigado.
- Não se recusa um brinde!
José Pratas virou-se e encarou o homem desconhecido.
- Desculpe, não estou a reconhecê-lo...
- Trabalho na Câmara.
- Pois. Um brinde então!
- Gosto da sua gravata José Pratas, como gostava de ter uma assim!



José Pratas acordou sentado na cadeira da barbearia. De barba por fazer. De bata branca vestida. Mas sem roupa nenhuma por baixo.



Estava na hora de fechar quando lhe apareceu aquele cliente. Doíam-lhe as costas e os pés, não lhe apetecía atender mais ninguém, mas o seu pai sempre lhe dissera que cliente é cliente e cliente puxa cliente. Reconheceu-o da festa do baptizado do filho. O outro estava cheio de conversa, de á-vontade, atirou-se para uma cadeira e puxou ele mesmo de uma toalha branca, pediu-lhe barba, escanhoada, e com jeitinho que tinha umas coisinhas para ir tirar a limpo e precisava de boa aparência.
José Pratas olhava-o minuciosamente, agitava o pincel na pequena bacia de metal formando uma espuma rica e macia, tombou levemente a cadeira e ensaboou-lhe a cara com cuidado. Abriu a navalha, por cada passagem, limpava no ombro coberto pela toalha. Junto à orelha do lado esquerdo, deu-lhe um clarão, uma espécie de imagem reflectida no espelho, viu-se nu, parou o movimento, virou-se de frente esquecendo o cliente e num repente, arrancou-lhe a toalha, desapertou-lhe o casaco e descobriu-lhe a sua gravata do dia do baptizado. Arfou, puxou, começou a berrar, o outro agarrado às mãos de José Pratas a chamar-lhe louco e a tentar desembaraçar-se das garras que o prendíam, tombaram os dois ao chão e num reboliço e gritaria atraíram as gentes que passavam a caminho de casa.



José Pratas Pai foi chamado à barbearia e mal o filho lhe reconheceu os sapatos, escapou-se ao corpo do outro, alcançou a navalha ainda com vestigios de espuma e certeiro passou-a na garganta que esgichou o espelho e os demais que já se acotovelavam para ver a cena de perto.



Esmeralda não voltou a casar. Todos comentam como José Pratas não é nada parecido com o José Pratas. Nem com o avô, nem com os outros Josés Pratas que ainda tiveram oportunidade de conhecer. Mas há um certo funcionário da Câmara a quem ele dá muitos ares. Até se diz - diz-se - que Esmeralda tería roubado a gravata do marido do dia da festa do baptizado do filho para oferecer ao amante. Diz-se. Conversa de barbeiro.







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