Envolvidos por uma história de encantamento e comoção, permaneceram juntos para além daquilo que sentiam um pelo outro.
Acharam no hábito a obrigação do compromisso até ao extremo da relação.
Surgiram os ciúmes, a desconfiança, o mal-estar.
Ele impunha-lhe uma conduta de olhos baixos, alheada ao resto do mundo; ela contestava, e dizia não entender; ele argumentava que era bom sentir ciúme, demonstração do seu amor e zelo; ela sorria, sentindo-se única e orgulhosa por esse cuidado especial, enganando-se a si mesma.
Mas depressa os laços que os uniam começaram a ficar fracos e esgaçados por uma constante discussão sobre a verdade e a mentira.
Havia sempre um cansaço latente na aproximação, no diálogo e até no silêncio.
Surgiram depois, as cobranças: aquilo que ela deveria fazer por ele se o amasse; as flores que ela devería receber caso ele fosse “mesmo” sincero. E todos os actos eram medidos na perspectiva do bem e do mal, do mais e do menos, do eu e do tu.
Começaram as vigias e as perseguições.
Se não se encontravam morriam de saudade um do outro; se estavam juntos discutiam constantemente; se um telefonava ao outro desmarcando o encontro, de imediato a acusação saltava, procurando nessa ausência anunciada o prenúncio da traição.
Havia berros e lágrimas, ódio e paixão, remorso e dor. Tudo levado ao extremo. Tudo empolado até se transformar num mal, numa patologia.
O dia de trabalho tinha chegado ao fim.
Ela saiu e sentiu na cara o escaldão do Agosto, seco, ardente. Ficou uns segundos parada no passeio, a ambientar-se à canícula e desejando estalar os dedos e por magia aparecer em casa, no resguardo da sombra e do fresco. Começou a sentir um fio de água nos sovacos e no vale dos seios. Agitou a mão como se fosse um leque. Sentiu dois dedos espetarem-se nas costelas e deu um pulo. Rodou e viu nas suas costas um amigo que há muito não encontrava.
Riu. O amigo também. Saltaram nos braços um do outro, o instinto a abraçá-los.
Ele convidou-a para um refresco; ela de imediato aceitou; e, depois, desfez – mal - o sim que acabara de oferecer, saltando-lhe à imaginação mais uma discussão feia com o namorado.
O amigo percebeu e fez uma alusão ao carácter desse tal que a tinha roubado aos amigos, ao social, à própria vida.
Ela só baixou os olhos e não foi capaz de arranjar argumentos capazes de o contradizer.
Disse só que se fazia tarde…que era tempo de ir. E ele, no receio de perder a amizade dela por mais um tempo indefinido decidiu acompanhá-la. Ela ainda hesitou e avançou uma e outra frase tentando demovê-lo, suspeitando que o namorado a apanhasse numa falta que na verdade não cometera. Mas a inocência da relação dos dois não dava mote a conversa alheia e acabaram por seguir juntos.
Conversaram do que faziam, dos planos para o futuro, das brincadeiras do passado, recordaram amigos comuns, alegrias em conjunto enquanto bando de estudantes à solta. Riram. E calaram-se de supetão quando chegaram à porta da casa dela.
Parecia o fim do caminho.
Ele pousou-lhe a mão no ombro e pediu que se cuidasse, que estava magra demais, triste no olhar, esquecida dos sorrisos.
Ela baixou o rosto e não disse nada.
Ele dobrou-se um pouco e beijou-lhe a testa, afastando a franja rebelde.
Ela fechou os olhos e sentiu um aconchego no coração por aquele momento de paz.
Para logo sentir um abanão, um esticão no braço que a trouxe de rojo para longe do momento.
Surpreendida, pareceu acordar, e com um semblante de pavor constatou que o namorado estava ali.
Ali mesmo, junto dela e do seu amigo.
Os passantes olhavam e paravam perante a gritaria e a injúria oferecida ao vento.
Ela calada e presa por um braço ficara muda, sem conseguir libertar-se ou falar o que quer que fosse em sua defesa. Só olhava para o seu amigo, que tão atónito como ela, perdera igualmente a capacidade de reagir.
Foi então que o chão se abriu mas não o suficiente para a engolir a si e à vergonha do que sentiu: o namorado agarrou-lhe o pescoço e forçou-a a beijá-lo nos lábios para logo de seguida, prender nas mãos o pescoço do seu amigo e beijá-lo igualmente da mesma forma.
E depois de tão surpreendentemente ter aparecido assim se foi.
Ficaram os dois sem nada proferir, ela deitando um fio de lágrimas, ele afagando-lhe a cabeça. Amigos como sempre haviam sido.
Não disseram adeus, partiram no silêncio da dor comungada.
6 Fevereiro 2006
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