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A roda num movimento rápido dava a sensação de um fio negro a cortar o empedrado. Saltitava, serpenteava que o empeno era tamanho e só um hábil condutor destas manhas conseguía dominar o enviusado da direcção, sempre teimando guinar à esquerda. Talvez se devesse à ultima corrida, estacada quando aquele carro desvairado os atirou como uma parelha para um monte de terra na berma da estrada...ou quando dera boleia ao miúdo do Mata-Ratos, montado no guiador, vai que as pernas tão compridas se engataram nos raios! Raios o partam! Que o miudo até mancava e foram os dois ao chão...ou então, piorou a pedalada desde o último dono...que para dizer a verdade, esta tinha sido surripiada à porta de um café. Tão bonita, ali encostada e tão sózinha, tão abandonada...Quisera o destino que ele passasse naquele momento e se encantasse com prenda tão formosa e necessária, que os pés numa só bolha já vinham de Espanha, sem descanso que a Guarda fareja mais que o perdigueiro e o estomago da mingua trazía uma fome de dois dias.
Nunca mais se separaram. Até andava a pensar em comprar uma campainha mas as que vira eram reles e quando se interessava por alguma, o vendedor logo lhe inquiria se a bicicleta era sua, apontando de queixo a sua máquina maravilha. Aí desistía e pé esquerdo no pedal, dava balanço à direita para ganhar embalagem e montar-se como um corredor, rabo ao alto, dorso curvado, gingando todo para se apressar dali para fora.
A campainha era um capricho, pois quando pedalava todos se afastavam e se algum se distraía, ele berrava um "fuje" que se mostrava deveras eficaz. Depois do acidente com o filho do Mata-Ratos nem sequer precisava de abrir as goelas.
Andava ele nestas idas e vindas quando um dia os olhos se rasgaram para ao fundo da calçada de empedrado, encontrar a figura de um Cabo da Guarda. Apertou os travões com força e depois só o direito, dando aos pedais em sentido inverso, aliviou o punho até se estacar por completo.
Ele conhecía aquela cara, já a vira entre o arvoredo e luas cheias quando se passava para o outro lado. E sabía que o Cabo o havía mirado também, de costas, na fugida.
Tinha que se esconder...
Nunca mais se separaram. Até andava a pensar em comprar uma campainha mas as que vira eram reles e quando se interessava por alguma, o vendedor logo lhe inquiria se a bicicleta era sua, apontando de queixo a sua máquina maravilha. Aí desistía e pé esquerdo no pedal, dava balanço à direita para ganhar embalagem e montar-se como um corredor, rabo ao alto, dorso curvado, gingando todo para se apressar dali para fora.
A campainha era um capricho, pois quando pedalava todos se afastavam e se algum se distraía, ele berrava um "fuje" que se mostrava deveras eficaz. Depois do acidente com o filho do Mata-Ratos nem sequer precisava de abrir as goelas.
Andava ele nestas idas e vindas quando um dia os olhos se rasgaram para ao fundo da calçada de empedrado, encontrar a figura de um Cabo da Guarda. Apertou os travões com força e depois só o direito, dando aos pedais em sentido inverso, aliviou o punho até se estacar por completo.
Ele conhecía aquela cara, já a vira entre o arvoredo e luas cheias quando se passava para o outro lado. E sabía que o Cabo o havía mirado também, de costas, na fugida.
Tinha que se esconder...
Desmontou e amparou a bicicleta às pernas, despindo o casaco preto muito puído. De colete e mangas de camisa aparentava ser outro e isto da primeira vista tem muito que se lhe diga. Embrulhou a veste numa rodilha e descansou-a sobre o selim, achatando-a com uma palmada seca. Depois, ergueu a bicicleta e virou-a no rumo contrário, levando-a à mão, calmo, lento, como se pensativo da vida o tornasse invisivel aos olhos do Cabo. Andou vários metros, quando ouviu o silvo do apito da Guarda.
Todo o cuidado se foi e ligeiro embalou-se na máquina, olhando atrás, medindo a distância das suas rodas até às pernas alvoraçadas do Cabo que não parava de bufar no apito metálico. Quando achou que o alcance estava longe, rasgou a boca numa gargalhada amarela exibindo o vicio do cigarro enrolado enquanto lesto erguia o braço esquerdo e bem espetado no horizonte desfraldou um dedo médio seguido de uma pericia sem mãos ao guiador e culminado num "Toma lá, Cabo de Merda!"
Pedalou e pedalou até sentir que as pernas davam para voar, chegando ao extremo da povoação.
Mais além só o casinhoto da Maria Bastarda, velha crua e bruxa dizem, mas ele não é homem de medos, que esse já lhe apareceu por várias vezes e espantou-o com pouco mais de um fuje.
Agora tinha mais tempo para pensar: sacudiu o casaco, espalmado de servir de assento, vestiu-o e retomou a compostura, acabando por encostar a bicicleta à porta da casa da lenha da feiticeira.
Assim como assim, se encontrassem a sua pasteleira nunca poderíam dizer que era dele e de verdade, a pé também se escapa.
Entrou no alheio e a penumbra cegou-o. Sentía o cheiro de pinho de troncos ainda verdes...mas outro odor o incomodava, picava-lhe no nariz adunco... cheiro de ervas, cheiro de canfora, cheiro de bolor, cheiro de velho...não sabía o que era.
Apalpando achou um monte de palha e sentou-se escutando o silêncio. Parecía que lhe tinha soado o apito de novo, não, talvez passos, é o amolador afinal, que raio de coisa esta que se ouvem coisas quando as coisas não fazem barulho e quando não há barulho tudo se ouve, tudo se sente.
Durante uns segundos deixou de respirar pois que a certeza de outro lá fora era outro na sua cabeça. Mas não, alguém bulía com a sua bicicleta, tocava nos punhos, experimentava a firmeza do travão, chegava ao ponto de se sentar sobre aquele selim duro e marcado das molas ferrugentas, que isto agora era demais! Deu um pulo e decidido deitou a mão à argola que servía de fecho e logo que escancarasse a portada havería de jorrar o sangue.
Porém, ali ficou que a voz da Maria Bastarda, sem imagem que a traísse, lhe disse "queto" e ele mudo obedeceu, que era a "Guarda" sussurrou.
Foi assim que percebeu que o cheiro que sentía era cheiro a velha.
Todo o cuidado se foi e ligeiro embalou-se na máquina, olhando atrás, medindo a distância das suas rodas até às pernas alvoraçadas do Cabo que não parava de bufar no apito metálico. Quando achou que o alcance estava longe, rasgou a boca numa gargalhada amarela exibindo o vicio do cigarro enrolado enquanto lesto erguia o braço esquerdo e bem espetado no horizonte desfraldou um dedo médio seguido de uma pericia sem mãos ao guiador e culminado num "Toma lá, Cabo de Merda!"
Pedalou e pedalou até sentir que as pernas davam para voar, chegando ao extremo da povoação.
Mais além só o casinhoto da Maria Bastarda, velha crua e bruxa dizem, mas ele não é homem de medos, que esse já lhe apareceu por várias vezes e espantou-o com pouco mais de um fuje.
Agora tinha mais tempo para pensar: sacudiu o casaco, espalmado de servir de assento, vestiu-o e retomou a compostura, acabando por encostar a bicicleta à porta da casa da lenha da feiticeira.
Assim como assim, se encontrassem a sua pasteleira nunca poderíam dizer que era dele e de verdade, a pé também se escapa.
Entrou no alheio e a penumbra cegou-o. Sentía o cheiro de pinho de troncos ainda verdes...mas outro odor o incomodava, picava-lhe no nariz adunco... cheiro de ervas, cheiro de canfora, cheiro de bolor, cheiro de velho...não sabía o que era.
Apalpando achou um monte de palha e sentou-se escutando o silêncio. Parecía que lhe tinha soado o apito de novo, não, talvez passos, é o amolador afinal, que raio de coisa esta que se ouvem coisas quando as coisas não fazem barulho e quando não há barulho tudo se ouve, tudo se sente.
Durante uns segundos deixou de respirar pois que a certeza de outro lá fora era outro na sua cabeça. Mas não, alguém bulía com a sua bicicleta, tocava nos punhos, experimentava a firmeza do travão, chegava ao ponto de se sentar sobre aquele selim duro e marcado das molas ferrugentas, que isto agora era demais! Deu um pulo e decidido deitou a mão à argola que servía de fecho e logo que escancarasse a portada havería de jorrar o sangue.
Porém, ali ficou que a voz da Maria Bastarda, sem imagem que a traísse, lhe disse "queto" e ele mudo obedeceu, que era a "Guarda" sussurrou.
Foi assim que percebeu que o cheiro que sentía era cheiro a velha.
A luz entrou em forma de cone quando o Cabo da Guarda empurrou devagarinho e sem entrar, a porta da casa da lenha de Maria Bastarda.
Ouviu-se o som metálico da bicicleta a tombar no chão, a roda da frente girou tristemente, o Cabo chutou-a a exorcisar a falta do condutor e a bruxa assomou de cabelos em desalinho, pés nus e rugosos a despontarem sob as vestes em negro.
O Cabo deu um passo atrás e levou a mão à cinta a apalpar a segurança da pistola, a autoridade à distância do fecho do coldre, nariz empinando o medo da outra mas que esta não tem medos só os faz aos outros. O Cabo baixou agora o nariz que da velha nem o cheiro, só mofo, "roim", a morte por aqui. E o silêncio, que a bruxa só o mira, não lhe demanda pois que vai ele que é homem para tudo e até chegou a Cabo de Guarda inquiri-la sobre o ciclista malfeitor, a Espanha vai e volta e atrás dele há-de seguir até o apanhar que ele é a ordem e raça daquele mais nenhum vai haver.
Maria Bastarda é doida, ri-se, escancara a boca, mostra a linguínha afiada, ali já não há dentes, só pragas e condenações, bate com os pés no pó do chão, que isto não afasta o Cabo, dá-lhe este um safanão nos peitos que a atira às portadas e agora tudo aberto, entra.
O escuro enfeita a casa da lenha, Maria não gosta mas ri, que é doida. O Cabo arrasta as botas, oferece pontapés ao que não vê, pede luz, que se acenda a lamparina nesta toca de bicho pessonha, hoje não sai sem levar o fugitivo, o quase preso. A bruxa oferece-lhe a mecha escurecida do candeeiro que ele alumia mas mal alcança adiante, quem fechou a porta, pois deve ter sido o pé fendido. Ri Cabo, que agora estás doido, é o medo a vesti-lo, e sente-se apertado que Maria Bastarda se cravou a ele e ainda outras mãos, outros corpos a cingi-lo, a girar o mundo sobre ele.
Cá fora não há vivalma. Só uma bicicleta tombada. E o bater das aves em debandada com o estouro da pistola. Ele veio erguer a sua montada, devolver-lhe a dignidade, confirmar todas as peças ferrugentas no seu lugar, conferir os pedais. Deixou um rasto de sangue no selim, que rápido limpa, passa a mão às calças que num fato escuro nada se vê. Maria Bastarda ainda ri, que é mesmo doida mas ajudou-o.
Vem à porta. Parece uma despedida...ela estica o braço até ele e mostra-lhe uma campainha prateada, linda, capaz o suficiente para a sua bicicleta, "pega" arremessa-lhe ela. Ele agarra firme e como nunca soube agradecer por nada lhe ter sido alguma vez oferecido, só sabe encostar a campainha ao coração, talvez mirar nos olhos de Maria Bastarda, adivinhar-lhe a razão do gesto, sentir pena pelo riso de doida, sentir que nunca esquecerá...Apoiou o pé esquerdo no pedal, vai-se agora que este Cabo está no inferno mas outros hão-de chegar. "Queto", manda ela, "que meu filho espera-te", que filho este que vem do nada e ainda por cima o espera, a noite é que vem por aí e tem de se fazer ao caminho antes que lhe farejem o trilho.
Um homem pequeno de mãos grandes como pás, surgiu detrás de Maria Bastarda. Apoiado a um pau, tinha os mesmos olhos da mãe, os pés escuros e desnudos como os da mãe. Não ria como a mãe mas batía com o varapau a tempos certos arredondando covas no chão poirento.
Ele olhou-o como nas noites de passagem para o outro lado e ouviu-lhe dizer "lembras uma bicicleta que estava encostada à porta de um café ?"
Ouviu-se o som metálico da bicicleta a tombar no chão, a roda da frente girou tristemente, o Cabo chutou-a a exorcisar a falta do condutor e a bruxa assomou de cabelos em desalinho, pés nus e rugosos a despontarem sob as vestes em negro.
O Cabo deu um passo atrás e levou a mão à cinta a apalpar a segurança da pistola, a autoridade à distância do fecho do coldre, nariz empinando o medo da outra mas que esta não tem medos só os faz aos outros. O Cabo baixou agora o nariz que da velha nem o cheiro, só mofo, "roim", a morte por aqui. E o silêncio, que a bruxa só o mira, não lhe demanda pois que vai ele que é homem para tudo e até chegou a Cabo de Guarda inquiri-la sobre o ciclista malfeitor, a Espanha vai e volta e atrás dele há-de seguir até o apanhar que ele é a ordem e raça daquele mais nenhum vai haver.
Maria Bastarda é doida, ri-se, escancara a boca, mostra a linguínha afiada, ali já não há dentes, só pragas e condenações, bate com os pés no pó do chão, que isto não afasta o Cabo, dá-lhe este um safanão nos peitos que a atira às portadas e agora tudo aberto, entra.
O escuro enfeita a casa da lenha, Maria não gosta mas ri, que é doida. O Cabo arrasta as botas, oferece pontapés ao que não vê, pede luz, que se acenda a lamparina nesta toca de bicho pessonha, hoje não sai sem levar o fugitivo, o quase preso. A bruxa oferece-lhe a mecha escurecida do candeeiro que ele alumia mas mal alcança adiante, quem fechou a porta, pois deve ter sido o pé fendido. Ri Cabo, que agora estás doido, é o medo a vesti-lo, e sente-se apertado que Maria Bastarda se cravou a ele e ainda outras mãos, outros corpos a cingi-lo, a girar o mundo sobre ele.
Cá fora não há vivalma. Só uma bicicleta tombada. E o bater das aves em debandada com o estouro da pistola. Ele veio erguer a sua montada, devolver-lhe a dignidade, confirmar todas as peças ferrugentas no seu lugar, conferir os pedais. Deixou um rasto de sangue no selim, que rápido limpa, passa a mão às calças que num fato escuro nada se vê. Maria Bastarda ainda ri, que é mesmo doida mas ajudou-o.
Vem à porta. Parece uma despedida...ela estica o braço até ele e mostra-lhe uma campainha prateada, linda, capaz o suficiente para a sua bicicleta, "pega" arremessa-lhe ela. Ele agarra firme e como nunca soube agradecer por nada lhe ter sido alguma vez oferecido, só sabe encostar a campainha ao coração, talvez mirar nos olhos de Maria Bastarda, adivinhar-lhe a razão do gesto, sentir pena pelo riso de doida, sentir que nunca esquecerá...Apoiou o pé esquerdo no pedal, vai-se agora que este Cabo está no inferno mas outros hão-de chegar. "Queto", manda ela, "que meu filho espera-te", que filho este que vem do nada e ainda por cima o espera, a noite é que vem por aí e tem de se fazer ao caminho antes que lhe farejem o trilho.
Um homem pequeno de mãos grandes como pás, surgiu detrás de Maria Bastarda. Apoiado a um pau, tinha os mesmos olhos da mãe, os pés escuros e desnudos como os da mãe. Não ria como a mãe mas batía com o varapau a tempos certos arredondando covas no chão poirento.
Ele olhou-o como nas noites de passagem para o outro lado e ouviu-lhe dizer "lembras uma bicicleta que estava encostada à porta de um café ?"
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(Maio/2007)
1 comentário:
Mais um final em grande!
bj
marisa
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