Como pintar uma assoalhada de 20m2 em apenas 3 meses

 




MÊS UM
 
 
Decidi mudar a minha vida e como tal, nada melhor do que começar pela nossa própria casa.
Como a coisa vai mais ou menos ( mal) e não dá para contratar uma decoradora nem comprar uns tarecos novos, empenhei-me sem qualquer receio, na tarefa de pintar estas paredes esmurradas e com algumas brechas e marca de sapatos atirados ao vácuo em finais de dia, alterando o espaço envolvente para uma harmonia de tons pastel - que acho eu! - vão muito bem com a Primavera que se tem feito sentir.
Meti pés a caminho e fui à procura das tintas e adjacente material mas, o funcionário que me atendeu era um vendedor nato e quando saí da loja senti o peso nos braços não só das latas de tinta e rolos mas ainda, de trinchas de várias polegadas, um artefacto estranhíssimo que é destinado aos cantos, fita crepe auto-colante para protecção de sancas, caixilharias e afins, um plástico do tamanho de uma tenda para cobrir o chão, diluente especifico de limpeza e massa para reparação de fissuras e competentes espátulas contrapondo-se num alivío de carteira tão só aligeirado pela sensação de que de facto, serei um verdadeiro profissional.
Chegado a casa cheio de ânimo, arranquei os quadros e afastei a mobilia para o centro da sala. Bolas! Isto afinal é enorme! Nunca me tinha apercebido como esta assoalhada tinha tanto espaço! Meti mãos à obra, ou melhor dizendo, à fita crepe, mas esta porcaria não é tão fácil de colar como parecía pois pega-se a tudo menos às tomadas que quero isolar e no rodapé trouxe umas bolas de cotão agarrado, que estavam escondidas pelos móveis; e agora é que não cola mesmo!
Acabei por conseguir tirar a tampa à lata de tinta com uma faca que ficou amarrecada e resultou nalguns golpes na mão esquerda. O vendedor tinha razão: as tintas actuais não cheiram a tinta. Cheiram a maçã. A maçã verde misturada com cheiro de tinta. Misturei no tabuleiro uma parte de branco com duas de amarelo, mas o resultado final não foi famoso...o que eu quería era um tom de amêndoa mas saiu-me mais para o banana. Talvez um pouco mais de branco...mas estas artes de fabricar cores têm o seu quê e o peso das latas e o esforço que já havía gasto no transporte e arrasto de móveis deixou-me a mão trémula e nada acertada para o meu objectivo final, com muitos pingos a mancharem o soalho (devería já ter posto o plástico, então?!). Mas convenci-me que depois de aplicada talvez a cor se mostrasse mais a meu contento e determinado, atirei-me à parede riscando a amarelado o que agora me parecía estar muito branco.
De repente, lembrei que não tinha tapado as rachas nem restaurado aquela quina esboroada. Tarde de mais! Já lá havía passado com o rolo. Larguei tudo e enquanto agoniado pelo cheiro do diluente a dissolver o cheiro da maçã, pensei que no dia seguinte havería de iniciar a minha obra pela reparação das fissuras da parede e numa segunda camada de tinta disfarçaría o meu esquecimento.
Além disso, estava cansado.
No dia seguinte, já não recordo porquê não tive qualquer hipótese de voltar aos trabalhos.
Aliás, só passados cinco dias é que peguei de novo no rolo. Comecei pela parede contrária onde tinha iniciado.
No final dessa jornada e ao tentar esticar-me para descontraír os musculos elevei os olhos ao tecto e constatei que devería ter sido por aí que devería ter começado a pintura. Fiquei quase suspenso por um fio invisivel a mirar as pequeninas teias de aranha presas no candeeiro. Esmoreci. Lavei o material com o diluente que acabou por salpicar para o meu olho direito e queimado e semi-cego larguei aqueles objectos mortíferos no lavatório, proferindo casa fora raios e caveiras.
Fui obrigado a supender a minha tarefa até recuperar a noção de distância.
Quando peguei no rolo estava seco como um bacalhau e tal como o fiel amigo deixei-o a demolhar. Durante mais cinco dias.
Afinal a tinta era facilmente removida com água; já que a tinta era da dita.
Maldito vendedor!
Exausto ainda sem ter pegado na trincha, descobri que não tinha um escadote alto o suficiente para atingir o tecto.
Esperei pelo fim do mês e do dia de pagamento para poder adquiri-lo.
 
 
MÊS DOIS
 
 
Resolvi pintar o tecto a branco.
O problema foi conseguir envolver a campanula do candeeiro com a fita crepe auto-colante ao mesmo tempo que me equilibrava no topo do escadote.
No intuito de dar uma boa cobertura na primeira demão, embebi demasiado o rolo e o excesso claro, escorreu pelo meu braço até ao cotovelo, depois para o chão em pingas grossas. Algumas placas de tinta foram alojar-se no interior do abatjour em forma de chapéu de chuva aberto. Não sei bem como algum dia irei conseguir limpar isto...a menos que desmonte o candeeiro.
Tive fortes dores no pescoço. E no ombro direito. E também na mão, quase não conseguía fazer os movimentos de abrir e fechar. Duas bolhas na palma direita ardíam-me e provocavam-me uma raiva mal contida contra mim mesmo.
Nunca me ajeitei a fazer fosse o que fosse à esquerda; ainda tentei, mas o rolo pareceu ter ganho asas e vontade própria, soltando-se da minha mão inútil e arremessando-se violento às vitrines do móvel da sala. Um rasto lamentoso a branco deixou uma marca que até hoje permanece vincada na madeira.
Achei que devería dar a mim mesmo uns dias de folga e de uma necessária recuperação aos meus musculos retesados e inchados. Não sabía bem quais, pois todo o corpo me doía.
Num final de dia de trabalho entrei em casa com uma vitalidade capaz de demolir qualquer contrariedade: olhei a parede com um borrão amarelado em que me tinha iniciado e ignorando a cor que entretanto já havía queimado um pouco pelos raios de sol que atravessavam a sala, pintei-a audacioso de amarelo puro sem a desdobrar a branco.
Terminei a minha obra em apenas três horas e meia.
Senti-me feliz para logo a seguir levar um baque. Então não é que a outra parede estava a banana e esta parecía um prato de caril?!
Soltei um urro, atirei com o rolo para dentro do lavatório e fui encontrar-me com dois amigos meus que estavam na cervejaria da esquina.
Riram-se das manchas na minha roupa e de uma grossa rodela amarela que havía caído na minha calva, mesmo no cocoruto. Confessei-lhes o meu desgosto pela inaptidão de mãos e esmero que a minha personalidade havía revelado.
Um deles aconselhou-me "para eu me deixar disso" e falou-me do seu cunhado que era um homem muito jeitoso para este tipo de habilidades e que levava muito em conta. Passou-me o numero de contacto dele para um guardanapo de papel e mandou vir mais três finos.
Recordo-me que nos dias seguintes fez um calor desabitual para aquela altura do ano. Só apetecía andar na rua. Na verdade, não havíam mesmo condições para pintar: a tinta tinha engrossado e formado carolos grumosos, o rolo já tinha ido para o lixo pois da última vez não tinha sido limpo e nem mesma a técnica da demolhação o tinha salvo.
Resolvi dar um tempo a mim mesmo. Que diabos! Afinal não tinha ninguém a obrigar-me a pintar ou mesmo prazos marcados para terminar a tarefa!
Fui para a praia e apanhei um valente escaldão.
No resto desse mês não consegui - embora o quisesse, de verdade! - voltar a pintar.
 
 
MÊS TRÊS
 
 
Conheci uma miúda lindíssima na praia. Pensei em levá-la lá a casa mas nas condições em que a sala se apresentava era o mesmo que arruinar a minha reputação. E as miúdas ligam muito a estas coisas da arrumação. Fui adiando o quanto poude uma promessa minha de lhe fazer um jantar romântico à luz das velas, mas a eminência dela se desinteressar de vez da minha pessoa, forneceu-me a coragem e determinação para pegar na trincha. Sim, que já não havía rolo.
Fui comprar mais tinta, ignorando de vez os amarelos.
Branco, tudo branco.
Fui a um supermercado e eu mesmo adquiri sem fantasias de vendedor, uma lata de 30lts.
Com afinco e esmero molhei os pelos negros da trincha larga e fi-la deslizar por cima da cor banana, um branco brilhante e puro, acetinado. Lindo. Voltei a embeber a trincha daquela nívea cor e repassei: mas desta vez não deslizava, enrugava-se, deixando pequenos riscos dos desenhos dos pelos, emergindo aquele tom amarelado.
Olhei o balde de tinta, desconfiado: era esmalte, não tinta de água.
Comecei a suar.
E a procurar desesperadamente pelo guardanapo de papel onde o meu amigo escrevera o número de telefone do seu cunhado.
Liguei-lhe mas o homem devía ser mesmo bom, pois já tinha marcações para os próximos quinze dias; é que ele não fazía só aquilo, ele tinha uma profissão, era bancário.
Tentei negociar mas ele mostrou-se irredutível e não tive outro remédio senão aguentar e fazer-me de doente, adiando mais uma vez o tal jantar com a miúda que conhecera na praia.
No final do mês o homem bateu-me à porta às 8 da manhã, equipado com material próprio e para desprezo do meu.
Raspou os bocados de tinta onde havía brechas e betumou-os à perfeição; usou o nível e assobiou irritantemente enquanto colava uma fita crepe com uma precisão sem qualquer desvio ou engelha. Pintou e não pingou, e no final de janelas escancaradas, ainda me ajudou a colocar os móveis nos devidos sitios.
Paguei, senti-me frustrado pela simplicidade da tarefa.
Mas satisfeito, porque finalmente me havía livrado do que parecía assemelhar-se à construção do Convento de Mafra.
Comprei o jantar a uma empresa de catering e com as velas acesas, conquistei a miúda da praia.
Foi então que ela me disse:
- Paredes brancas?! Parece um hospital...não gostas de amarelo-sol?

 
(C.G.-21/05/2006)