“Morena, 25 anos, livre, de olhos castanhos e gosto pelas artes, 1,70 cm de alto, independente financeiramente, boca cheia e cabelos compridos, casa e carro, sem filhos nem projectos de compromisso, candidata-se a ser amiga de quem quiser ser seu amigo.”
Nadia ainda mordiscou a ponta da esferográfica, o olhar dirigido ao tecto procurando mais algum detalhe importante para se definir ou até mesmo um defeito aceitável em tom de aviso que pudesse acrescentar ao anúncio a publicar.
Teimosa…não, teimosa não, é melhor não revelar isto para já pensou, enquanto enrolava uma mecha de cabelo no indicador esquerdo.
Soltou o canudo que se formou e atendeu o telemóvel que soou um rap.
Um minuto depois desligou.
A sua amiga e confidente Carmo vinha a caminho e decerto, juntas nessa tarefa tudo sairia melhor!
Carmo, Carminho para Nadia, entrou ofegante, a desenrolar um cachecol sem fim semelhante a uma jibóia letal.
– Que aconteceu? Não percebi nada! Foi o Pitchufo? Foi ele? Que é que ele te fez, conta-me a verdade, que eu parto-lhe a cara! Foi o Pitchufo não foi? Desta vez não adianta esconderes Nadia!
E atirou-se sem modos para o sofá, os pés debaixo do traseiro num movimento anguloso num tique seu muito próprio.
Nadia olhou-a e sorriu. Carminho incrédula, olhos arregalados perante uma novidade eminente que desabasse como uma tempestade.
Nadia sorriu mais e acercou-se da amiga. Olhou-a nos olhos e pausadamente Vou contar-te tudo, desde o inicio…nem vais acreditar, parece uma história de um filme!
A outra aconchegou-se nos almofadões do sofá amarelo sol, devidamente instalada para receber o embate mas também confortavelmente acondicionada para assistir a uma película de suspense. Porque com Nadia nada era vulgar, ordinário, comum, normal, habitual. Sempre um ou outro pormenor faziam a diferença.
Pegou na folha de caderno onde ensaiara o anúncio a publicar e esticou para a amiga o ler.
– Que significa isto? Estás maluca?
Não estava nada maluca, estava aliás perfeitamente lúcida como já não se encontrava desde há dois anos para cá.
Conhecera Pitchufo numa viagem a Madrid. Ambos trabalhavam em turismo, em casas diferentes e com actividades diferentes mas tinham o mesmo apreço pela profissão e a graça de fazerem na vida o que gostavam, coisa rara hoje em dia.
- Eu que o diga… lamentou-se Carminho.
Ao descobrirem que moravam na mesma cidade e livres combinaram um encontro para o regresso. O que aconteceu. E que correu muito bem. E voltaram a repetir. E de novo se divertiram bastante e riram muito e descobriram um ror de coisas em comum. E à terceira, foi de vez: beijaram-se e gostaram. E apaixonaram-se. E conheceram as famílias. Tudo era perfeito.
Demasiado perfeito.
– Como assim? Se tudo estava bem, o que aconteceu?, interrompeu a amiga.
– O que aconteceu? Deixou de acontecer!, resposta rápida.
– Explica, por favor, pediu Carmo.
E Nadia não se fez rogada relatando com exactidão e pormenor todos os carinhos e atenções que Pitchufo lhe oferecia desde puxar a cadeira para ela se sentar, abrir a porta do elevador e dar-lhe a primazia de passagem, oferecer-lhe uma rosa vermelha, ligar-lhe para lhe recitar um verso apaixonado, elogiá-la em frente de outros como era bonita ou na privacidade confidenciar-lhe que estava elegante e orgulhoso de ser o seu namorado.
Acharam ser uma perda de tempo e energia cada um estar em casa própria quando podiam estar juntos e assim ela pediu-lhe que viessem morar juntos já que o seu apartamento era bastante maior e ensolarado do que o dele.
O dia da mudança foi o equivalente a um casamento com direito a copo de água e lua de mel só para dois.
Nadia começou a achar que o que se dizia sobre a vida de casal era pura mentira e muito provavelmente, essas pessoas que difamavam uma relação em comum tinham, tão só, tido muito azar na escolha.
Ao fim de dois meses a respirarem o mesmo ar, as noites de amor começaram a rarear. Assim como o trabalho de Pitchufo: uns dias tinha febre, outras falta de alento, noutras não estava para aturar aquilo e despedia-se por razão nenhuma.
Nadia espicaçava-o, mostrando as coisas boas da vida, o amor que tinham um pelo outro e que no fundo, era o mais importante, que de resto nada tinha muito relevo. Mas com o correr das estações, o discurso estava gasto e começou a sentir do seu bolso a única saída para suporte de todas as despesas correntes.
– Chulo! exclamou, indignada Carminho.
– Queres saber?! Eu nem me importava com a questão do dinheiro…o que me doía era a indolência, a falta de ânimo para o que quer que fosse, o deixa andar…estava sempre indisposto quando eu alvitrava que saíssemos para jantar ou fossemos a uma exposição. Eu trabalhava que nem uma louca na agência, vinha para casa e ainda fazia de empregada doméstica! E pagava com o corpo, que à noite, o que ele procurava em mim era uma amante disposta!
– Nunca imaginei…quando vos via…pareciam felizes!, lastimou Carmo.
Mas Nadia agora não disfarçava a mágoa que essas lembranças lhe traziam.
Recordou então o dia em que após uma discussão, cada vez mais frequentes, ele se ajoelhou aos pés dela e lhe ofereceu uma anel de noivado. Nadia ficou tocada pelo gesto e sentiu crescer, de novo, o mesmo empolamento que tinham acarinhado quando se haviam conhecido.
Bem depressa o sentimento se transformou quando verificou o extracto bancário e se apercebeu de onde saíra o dinheiro.
Ele agora estava permanentemente em casa. Mas só lá estava. Não fazia nada a não ser ocupar espaço. Nem sequer enfeitava o lugar pois deixara de o viver.
Nadia começou a sentir-se sem ar, presa a uma relação sem mensagem, sem receptor nem emissor, sem correspondência, trazia-lhe um cansaço acrescido, que conforme os dias passavam, sentia como grilhões nas pernas impedindo-a de correr e sorrir.
– E, então, que fizeste?
– Falei o que me ía na alma. Tirei o espinho que me atravancava o coração…
– E? E?...
– E ele chorou como uma criança que precisa de colo, que lhe façam um carinho no cabelo e lhe digam baixo ao ouvido o quanto gostamos dele… quería perdão.
– Então fizeram as pazes, ficaram bem, quero dizer, entenderam-se…
– Não. Não era a mãe dele, percebes?
Carminho compreendeu e baixou os olhos, triste porque Nadia estava triste também.
A conversa e o choro só atamancou a questão durante uma semana: tudo voltou à forma costumada e acomodada.
E um dia, depois de Nadia cansada chegar do emprego, foi ao quarto e recolheu tudo o que era dele numa mala, arrastou-a até à entrada, chamou-o, que ele deitado via a televisão, e pediu-lhe baixo.
– Vai-te. Sai. Vai-te embora, por favor.
E tudo foi tão surpreendente para Pitchufo, que só na hora de agarrar a pega da mala de viagem lhe dirigiu o olhar e inquiriu:
– Porquê?
– Porque nunca mais disseste que eu sou bonita e beleza é fundamental. Para os dois.
26 Janeiro de 2006
Sem comentários:
Enviar um comentário