Ana fechou com força o dossier, arrastando pela mesa até tocar o seu próprio ventre. Depois aconchegou-o a si, abraçando-o e olhando todos em redor sentados e com ar cansado, proferiu:
- É tudo?
Perguntas? Não há perguntas nem outras coisinhas de última hora, como é
habitual? Então, vamos! Não há mais tempo a perder! Estamos mesmo no limite e
ainda hoje tenho de remeter o produto ao cliente! Mário, vê se não te esqueces…
- Já sei!
Fica descansada! Amanhã de manhã tens o resultado das projecções da comida para
gatos em cima da tua secretária!
- Por favor!
Não quero de forma alguma abrir os noticiários com aquela louca da Kika Van
qualquer coisa, a exibir cartazes de animaizinhos maltratados! Só me faltava uma nova
rica com tendências hippies para me acabar com esta campanha dos gatos!
- Ana,
sossega! Não confias em mim?
- Ok! Vamos
lá, então!
Os sete
elementos da equipa de slogans e de desenho publicitário levantaram-se,
deixando atrás de si um rasto de cadeira arrastadas e cheiro de cinzeiro.
Ana foi a
primeira a sair da sala de reuniões.
Dirigiu-se em
passadas largas para o seu gabinete, organizando as ideias para o serão dessa
noite.
- Ana,
Ana! Espera!
- Sim? “-
respondeu, rodando nos calcanhares e olhando João que se aproximava.
- Jantamos
hoje?
- Nem
pensar! Tenho montes de coisas para fazer e nem sequer sei se o tempo chega!
- Vá
lá…nenhum homem aguenta três tampas seguidas!
- João,
acorda! Não vês que estamos a meio de uma batalha?! Por acaso não estiveste naquela
reunião, ali dentro? Estes criativos acabam comigo!
João abriu os
olhos claros e segurou-a meigamente pelos cotovelos, esticando um beicinho.
Depois começou a imitar um cachorro a ganir baixinho; uma melena de cabelo
loiro tombou-lhe sobre a testa. Ana soltou uma gargalhada e ajeitou-lhe o
cabelo permanentemente desalinhado.
- OK! Um
chocolate! Aceito um chocolate quente. Mas tem de ser coisa rápida, aviso já!
João ladrou,
ela voltou a rir.
- Adoro-te,
Ana. Não sei o que seria a minha vida sem ti…
- Ok, Ok!
Deixa lá isso, que não tenho tempo agora para romances de amor! Se queres tomar
um chocolate comigo, descemos os dois e tem de ser já!
João dedicou-lhe uma elegante vénia dobrando o seu
metro e oitenta pela metade, desmanchando uma vez mais a cabeleira farta cor de
trigo e com um gesto amplo de braço designou-lhe a primazia de passagem como um
verdadeiro cavalheiro.
Ela numa
corridinha curta que a saia travada lhe permitia, entrou no seu gabinete e
atirou com o dossier para cima da mesa. Agarrou no cardigan e pousou-nos
ombros, dirigindo-se apressada para os elevadores onde João a esperava de
sorriso aberto.
Entraram e ainda não tinham passado o andar quando
ele a agarrou pela cintura e a estreitou a si, olhando-a nos olhos cor de avelã.
Ana
beijou-o meigamente nas faces, depois no queixo, na ponta do nariz. Ele não se
fez rogado e tomou-a nos lábios carnudos, ao mesmo tempo que carregava no botão
vermelho do stop do velho elevador.
Um som triste
de madeira rangendo mobilizou a atenção dos dois mas João sossegou-a dizendo
que “é apenas este velho monstro a mostrar ciúmes de nós…e do pôr-do-sol que
temos só para nós”. Ana olhou-o alguns segundos e depois mordiscou-lhe a
orelha sussurrando:
- Esta é a
minha hora mágica do dia, quando o sol se põe…tudo é belo a esta hora…
- Tu és
bela. A minha bela Ana.
O elevador
deu um solavanco, arrancando das suas entranhas um grito de metal arranhado.
Depois silêncio. Novamente a madeira a rugir.
Os dois
mantinham-se abraçados, o coração dela a bater violentamente, ele olhando
o topo do elevador art noveau envidraçado a florões baços. Puxou-a mais para si
como se quisesse de alguma forma protegê-la de tudo e todos, guardando-a como um tesouro único.
E depois um
guincho prolongado numa velocidade vertiginosa, o ar a ser sugado para cima,
obrigando os dois corpos a afastarem-se e um estrondo enorme como um trovão.
João abriu os
olhos e viu um azul profundo que lhe feriu a vista.
Piscou várias
vezes tentando encontrar o rosto que ainda agora estava junto ao seu.
Voltou a
abrir os olhos e encontrou a cara que lhe era tão familiar.
- Ana!
Ana! Que aconteceu? Pensei que tinhas…
- Helena!
Chamo-me Helena! O Senhor está bem? Dói-lhe alguma coisa?
-
Helena?...não, eu quero é a Ana…Ana! – proferiu João, sentindo tudo a
andar à roda.
- Aqui não
há Ana nenhuma! Está a ouvir-me? Não desmaie! Está a ouvir? Não desmaie outra
vez!
Mas João não
ouviu nada; cerrou as pálpebras e viu Ana enrolada a um canto do elevador, o
cardigan a tapar-lhe a cabeleira escura, as costas cravadas de pedaços de
vidro, uma perna ensanguentada e dobrada pela canela com uma viga de madeira a
pesar-lhe.
Chamou-a mas
não obteve resposta. Não conseguiu repetir o nome dela, tinha a garganta presa
por um fumo denso e branco que o envolvia. Ouvia gritos abafados e pancadas que
não conseguia distinguir de onde provinham.
Quando
acordou sentiu um odor forte a mentol e éter. Levantou a cabeça e viu uma
enfermeira. Sentiu um dor funda na cara e na cabeça e também no pescoço e no
ombro. A enfermeira aproximou-se dele e ordenou-lhe num tom seco que não se
movesse.
João
perguntou por Ana.
- Não sei. Só sei que é um verdadeiro milagre você ter escapado com vida! E
agora sossegue! O principal remédio para essas queimaduras sararem é ficar
quieto, para a pele não esticar e encolher!
- E Ana?
Onde está? – insistia.
- Não sei.
Nem quero saber. Só quero saber dessas feridas e dessas queimaduras. Mas se
continuar agitado, garanto-lhe que quando sair daqui vai ficar com essa cara
igual a um saco de plástico amachucado e nessa altura, pode ter a certeza!
ninguém vai querer saber de si, homem!
João sentiu
que Ana lhe fugia, a vida lhe fugia, ele próprio sentia a afastar-se da vida.
Ouviu um som
semelhante a um grilo, ininterrupto, penetrante,. Apercebeu-se de uma azáfama
junto de si, mas não queria saber de nada mais.
Abriu os
olhos e voltou a ver um céu humilhantemente azul.
- Ah! De
novo! Venham! Ele voltou a abrir os olhos! Está a ouvir-me? O que lhe dói?
Percebe o que eu digo? …se calhar nem entende português! Será português? O que é que eu faço?
- Não faças
nada! Dá-lhe um beliscão! Conforme ele se queixar logo veremos se ele é de cá
ou não!- disse decidida Manuela.
- Um
beliscão? Que coisa primitiva! O homem não está bem e ainda lhe vão dar um
beliscão?- retorquiu Kika
João soltou
um berro.
Manuela não
esperara por mais opiniões e havia-lhe apertado a carne entre a pinça do
polegar e do indicador.
- É português!
Garanto-vos! E ou muito me engano ou tem o ombro fora do sitio! Já vi muitas
omoplatas a saltarem do encaixe e apresentam exactamente esse tipo de hematoma
arroxeado! – acrescentou sabiamente Manuela.
- Tens
razão…Quando estive em cenários de guerra vi alguns soldados com ombros fora do sitio
por causa do coice da arma e tinham exactamente o mesmo aspecto…- concordou
Kika.
- E agora?
Que fazemos? Que eu saiba nenhuma de nós é médica! – concluiu Helena.
Mas Manuela habilmente tomou nas palmas o ombro defeituoso e com um som seco e de esticão
colocou o membro no sitio. João gemeu e voltou a desmaiar.
Veio-lhe a
memória o funeral de Ana, as várias cirurgias a que se submeteu para reconstrução facial, um
implante capilar que tapasse a cova que lhe havia afundado o crâneo no lado
direito, passando imagens a velocidade de fotogramas.
Manuela deu um
valente estalo a João e este abriu os olhos.
- Ana? És
tu , não és? – e deitava as mãos em garra aos braços de Helena
- Não! Já
lhe disse que não! Chamo-me Helena! – repetia ela aflita.
- Mas eu
adoro-te! Será que esqueceste? O pôr do sol, lembras-te? A hora mágica! –
insistia de olhos muitos abertos.
- Você é
doido! E largue-me! Não sou Ana nenhuma!– e depois virando-se para as
outras duas mulheres – “Temos de arranjar água! O homem está a delirar!”
- Acho que
ele não vai conseguir escapar…já viram bem a cabeça dele? Deve ter sofrido um
traumatismo…é bem provável que não aguente…e nós também não. – Kika
proferiu as palavras como uma maldição e afastou-se até à beira da água.
Destroços boiavam,
órfãos de um pássaro gigante que desaparecera onde minutos atrás voavam aparentemente seguros, civilizadamente controlados até o piloto ter de aterrar de emergência e toda a compostura ter sido sugado para um vácuo de gritos e pânico.
Tantos anos
de meditação a preparar-se para uma outra vida e agora tudo lhe parecia um
anúncio da TVshop.
Olhou as
companheiras, de cócoras e debruçadas sobre o corpo daquele desconhecido que
repetia continuadamente o nome de Ana.
Não soube bem
porquê mas recordou uma Ana que havia uma dezena de anos atrás conhecera
vagamente numa reportagem sobre os direitos de animais e as campanhas publicitárias sobre alimentação. Lera sobre o trágico fim num elevador, tendo
como companhia um colega de escritório que por milagre sobrevivera.
- Voltou a
acordar!- surpreendeu-se Helena.
Manuela segurou
João pelo pescoço e olhando-o nos olhos, disse-lhe firme:
- Ouça! Nem
se atreva a pensar em morrer, está a ouvir? Senão, senão… dou-lhe outro estalo!
Agora, porte-se como um homem e trate de estar vivo que precisamos de si!
João fitou-a.
Viu
reflectido na voz da mulher um adeus a Ana.
Sentiu
entrar-lhe nas veias aquilo que há muitos anos atrás lhe fugira da vida, que alguém
precisava realmente dele.
31 Janeiro 2007
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