O último dia

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A aragem afastou-lhe o casaco do peito, descobriu-lhe os olhos fechados. Uma buzina insistente apressou-lhe o atravessar da passadeira mas ele não se assustou, comeu cada traço branco como degraus que se sobem na memória e esta, sabía-o bem, era uma escadaria longa de varandim auxiliar à mão pequena.

Lembrava-se de tudo, uma nitidez contundente como se fora passado recente o último dia de aulas. Férias. Nada fazer, só brincar, jogar à bola, confessar o desejo de ser grande, ter pernas altas para pular maior, um sexo comprido inferiorizando os amigos, derradeira chance de troca dos cromos. E depois os pais, a areia, o mar, tudo tão salgado e ardente, gaivotas que alam brancas como se fossem espuma. Férias, não há livros, não há o Professor Pimenta com cheiro de cigarros requentados a gritar tabuadas junto à boca nauseada nem o gordo Aleixo a mendigar-lhe o lanche envergonhado. Há caracóis. E há fumo, fumo de sardinhas que o Pai abana e vigia, o bife traçado da grelha negra onde imagina a prova dos nove e depois de brincar há tanta fome, a da boca, a dos olhos da Mãe a dizer podes ir, ele vai mas não agora, ouve tudo, quer tudo nos ouvidos para depois com a boca contar em segredos que só ele tem.
Férias, há calor e há frio. A areia quente que não escalda os pés do pai e as cavalitas, ele maior que o banheiro e a sua cadeira e tudo e tudo, até maior que o mar, há mergulhos, olhos abertos como peixes, saltos de ombros e pirulitos, dedos minguados como velhinhos e lábios roxos que tremem sem ele conseguir dizer que não tem frio. A toalha, a mão quente e macia que lhe esfrega as costas, fá-lo doce, doce o sossego dos gritos dos que se arrepiam na crista das ondas de arrebentação e ao sol tudo é bom., até a sogra na língua ou a madeira do cavalo do fotografo, lascada, já fora garbo na montaria inventada de um sheik sem temor.
Não há muros nestas horas em que o tempo aquece pés de chinelo mesmo sendo noite plena e a Lua troca às voltas à luz do dia, vale tudo, é-se tudo, cresce menino... lembra-te.

O passeio ali. Compôs o casaco, a mão ao peito, o coração no sitio. Sorriu. Os carros arrancaram soltando o escape furioso da impaciência do semáforo. Nunca percebeu como alguém num dia de sol como este pode ser tão zangado com a vida.
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(Maio /2010)