Maria das Neves

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A mudança para a casa nova obrigava-a a mexer em coisas guardadas, num afã de limpeza que nunca acaba bem por o ser.Sempre existem coisas que não largamos, que sempre vamos adiando mais uma vez a sua expulsão das nossas vidas, lembrando factos e emoções de tempos passados que nos prendem mais à vida, numa vã ilusão de voltarmos a um tempo que não tem regresso.Ela abriu caixas e seleccionou o que queria manter e o que decididamente, não precisaria mais na sua vida, nas suas recordações. Sentiu-se corajosa e rasgou papéis, velhos cartões de visita, programas de teatro e de exposições, desprezou fitas de embrulhos que pensara, um dia lhe fariam falta e nunca chegara a usar. E depois, mais uma gaveta, mais um caixote cambado transbordando de coisas inúteis. Fuçava laboriosa, detendo-se de quando em vez num ou noutro pormenor. E sem se aperceber bem onde, achou um envelope vermelho que um dia tinha sido vivo, agora manchado e pardacento. Enrugou a expressão e abriu-o trazendo à luz um cartão de boas-festas salpicado de brilhantes e com um gordo Pai Natal de saca cheia às costas. Passou o indicador naqueles vidrinhos minúsculos e muitos descolaram-se, transformando-se num pó teimoso que se colou a todos os dedos. Sorriu. Sorriu, fechou os olhos e recordou, sentindo no peito uma ternura cálida como um aconchego. Abriu devagar o cartão bonacheirão e as lágrimas distorceram aquelas letras desenhadas a tinta permanente, numa caligrafia cuidada tombada à direita. Encostou o cartão aberto à face e um soluço agitou-lhe o corpo.Recordou então, aquela noite de há muitos anos atrás, um Dezembro gelado e sem chuva, um 24 que passara a ser um número mágico.Maria das Neves havia convidado a família para a Consoada, como sempre e tradicionalmente o fazia, com mesa posta a preceito, faqueiro de prata, serviço da Companhia das Índias, os cristais dos copos filtrando a luz em cor de arco-íris.A árvore de natal e o presépio marcavam presença como todos os anos, cheiro de pinho e canela de arroz-doce, azevinho e romãs, nozes e velas.Um a um, os parentes foram desfilando, repetindo os cumprimentos gastos pelo hábito, sorrisos compostos para a ocasião, que alguns deles só se encontravam naquele 24 de Dezembro. Chegaram, trazendo nas mãos frias pacotes pequenos, garrafas de espumante, luvas amarfanhadas nos cachecóis que tentavam esconder a falta de imaginação da oferta.Maria das Neves incitava-os à entrada para o salão aquecido por uma vida de casa, ao conforto dos aromas da culinária tradicional, sugerindo que depositassem os presentes à roda do pinheiro carregado de bolas e fios dourados com tantos anos quantos os de Maria das Neves.E lá foram eles, largando os embrulhos à volta da árvore verde, tentando adivinhar que envelopes seriam aqueles que pendurados faziam companhia aos enfeites natalícios. Um sobrinho, mais afoito, pegou no canto de um envelope e leu por fora o nome da sua irmã; perscrutou rápido a vista pelos restantes sobrescritos coloridos na esperança de encontrar um dirigido a si mas sentiu a presença da sua tia Maria das Neves e desculpando-se mal, afastou-se para a mesa já posta.Algumas crianças corriam em circulo tentando agarrar-se ou apanhar o gato anafado, estimação de Maria das Neves.Então a dona da casa, bateu com um talher ao de leve no copo de cristal, impondo silêncio e ordem, chamando a velha criada e companheira para servir o jantar.A terrina fumegante da sopa de abóbora e castanhas rodou pela mesa comprida. Maria das Neves quis ser a ultima a ser servida e quando pegou na colher pesada, reparou que alguns haviam já terminado o caldo. Baixou os olhos semi-cerrados para o circulo laranja que o prato fundo lhe oferecía como paisagem e pensou para si que eram sempre os mesmos. Entre colheradas e o som do metal a bater na faiança, tosses oportunas e teimas de criança, terminou-se a sopa e a criada de negro e branco retirou sem expressão os pratos findos.Maria das Neves apurou a garganta, apoiou os cotovelos na mesa dando-lhe a segurança de terreno seu e lançou a pergunta à mesa de que esperavam para aquele Natal. Gerou-se um burburinho misturado com risos de tensão, interrogações à laia de resposta e ao certo ninguém disse nada de concreto. Ela, levando o copo da água aos lábios, prosseguiu num tom jocoso dizendo que dia de Natal era o dia do seu aniversário. O silêncio paralisou todos, pelo esquecimento da data, da contagem dos anos passados em Consoadas e dia seguinte, sem aflorar à memória que o dia 25 de Dezembro era o dia de aniversário de Maria das Neves.A criada voltou amparando-se num carrinho que chiava pelo peso das bandejas.Todos esqueceram o momento e se animaram pela fartura do bacalhau graúdo, couves fumegantes e tenras, batatas e ovos, o azeite de um alqueire particular que enfeitava o estômago de um forro macio como o cetim.E debatiam-se pelas travessas como se o mundo fosse acabar, disputando com o olhar guloso o dente de alho pisando a posta do fiel amigo. Uma das crianças começou a choramingar, repelindo os cheiros e a comida, logo seguida pelas outras que igualmente se negaram a engolir, mas Maria das Neves atenta, fez um gesto e alguns nacos de carne suculenta foram servidas aos infantes. As respectivas mães sabiam que isto aconteceria mas a prima direita e a torta também, assim como a sobrinha dirigiram à senhora da casa um agradecimento desmedido acompanhado de um “não era preciso, comem o que lhes dermos”.Agora, o vinho encorpado corava nas faces dos comensais uma satisfação e à vontade libertadoras, a compostura um pouco esquecida pelo calor da refeição e da bebida. Ouviam-se algumas gargalhadas mais sonoras, conversavam entre si e haviam já descurado as maneiras dos mais novos, esquecido a anfitriã.Maria das Neves comia em silêncio e observava-os: a sua família era um grupo de pessoas estranhas que não a conhecia, raramente a visitava e a considerava como uma excêntrica rica a quem recorriam nas horas de aperto financeiro. Nunca lhes havia negado ajuda nem tão pouco lhes perguntava qual o destino. Viúva desde jovem, fechara-se naquele casarão mas nunca ninguém lhe vira lágrimas ou acessos de solidão ou desespero. No fundo, Maria das Neves era só Maria das Neves. E a filha de Maria das Neves era considerada como a mãe, nem simpática nem antipática apenas esquecida na sua existência. Nunca estava presente na Consoada só no dia 25 de Dezembro e pouco falava.Vieram as frutas, os queijos, os licores e o paliteiro.O tio mais velho esbracejava animado ao defender o seu clube de futebol e bateu num copo, derramando o líquido sanguíneo na toalha de linho e renda; a sua mulher tentou evitar que a mancha alastrasse e na confusão de mãos acabou por partir o pé do copo, iniciando uma série de acusações veladas ao desajeitado esposo, que lhe respondeu à letra; o tio do meio e a filha meteram-se à conversa tentando separar uma discussão inevitável e repetida todos os Natais, só mudando os actores.Com a entrada dos doces e compotas, acompanhados do bule de café amainaram os ânimos. O Porto irradiou o seu tom rubi na mesa mas todos emudeceram quando Maria das Neves sublinhou que se tratava de um vinho com a mesma idade dela.Alguém tomou a garrafa pelo gargalo, sem cuidado, agitando-a brusca para tentar descobrir o ano de tão precioso néctar e assim adiantar-se à advinha. Mas por mais que procurasse no rótulo amarelecido e meio esfarelado do papel brasonado não conseguia ler a data. A garrafa foi passando de mão em mão no fervilhar da descoberta até chegar ao topo da mesa onde se sentava Maria das Neves. Abriu pausadamente a garrafa quente de tanta mão apertada no vidro e serviu minúsculos cálices com uma precisão firme não desperdiçando um pingo.Ergueu o cálice ao alto e levantou-se destacando-se para o que parecia ser um discurso.O tio velho bebeu de um gole e apercebeu-se da sua falta. A garrafa voltou a girar pela mesa para encher o seu cálice e um primo aproveitou também para beber o seu conteúdo de uma só assentada, voltando a esticar o braço, pedinchando como se nada houvera tomado.Maria das Neves disse então que muito provavelmente aquele seria o ultimo Natal em que todos estariam reunidos.Todos comentaram entre si que era um disparate e muitos Natais viriam pela frente, que as crianças haveriam de se tornar pais e até avós! E todos comemorariam o Natal como sempre.Maria das Neves sorriu abertamente pela primeira vez na noite e constatou o óbvio, “ninguém é imortal”.Nova onda de falas e bons augúrios para o futuro e vida longa fizeram ouvir-se.Maria das Neves provou o seu Porto e fechou os olhos agradada. Os outros fizeram o mesmo.Entrou o bolo rei feito em casa, de uma receita guardada a sete chaves que só a criada conhecia.Os frutos secos amontoavam-se em bochechas cheias daquela massa fina, misturados numa saliva demasiado abundante para conter tamanho prazer.E a satisfação era tão grande que uma prima descalçou os sapatos novos e duros, largando-os no Arraiolos, afagando a sola do pé dorido na lã macia enquanto o tio gordo alargava disfarçadamente o cinto das calças, dando largas ao ventre dilatado.As crianças tiveram permissão para colher os chocolates pendurados na árvore de Natal e Maria das Neves riu ao ver a felicidade naquelas mãos pequenas puxando coelhinhos, os bicos dos pés empoleirados para crescer e chegar lá ao alto, pratas coloridas rasgadas para tomar na boca lambuzada o castanho do doce.Sentia-se no ambiente uma ansiedade pelos presentes dos adultos, uma inquietação pelos ditos envelopes, um desejo de que naquele Natal houvessem cheques ou notas, um talão de depósito ou um certificado de poupança.Maria das Neves achou que não valia a pena continuar com aquela tortura e dirigiu-se para o pinheiro enfeitado; a família levantou-se largando os guardanapos engordurados pela mesa, alguns caídos no chão, tombados nas cadeiras. Todos se precipitaram e trocaram presentes entre si, acompanhados de beijinhos repenicados e desejos de “Feliz Natal” gritado numa alegria exultante e forçada pela época. E conforme cumpriam a sua função, ficavam por ali, como peixes à babugem de miolo de pão, à espera que a sua lembrança de Natal fosse um dos envelopes.Maria das Neves tinha entre braços, pares de meia de lã, botas de lã para dormir, luvas de lã.Agradeceu e pediu que retirassem da árvore de natal os envelopes que competiam a cada um, identificados por fora a tinta permanente numa letra deitada à direita que desenhava artisticamente o nome de cada um presente.Atiraram-se ao pinheiro esguio vergando-o, caindo os enfeites de vidro de tantos anos agora estilhaçados, anjos que não voavam tombaram por terra, a estrela do topo ameaçadoramente agitada parecia brilhar mais.Ela pediu calma e que não abrissem os envelopes, que tomassem de novo os lugares na mesa. Voltou a pedir, que ninguém a escutava, ocupados que estavam a cheirar os sobrescritos, a pô-los a contra-luz na esperança de vislumbrarem o seu interior, a abanarem o papel que guardava, sabia-se lá que tesouros.Um único envelope, vermelho vivo, havia restado no pinheiro agora depenado de agulhas que jaziam tristes no soalho.Todos de novo à mesa, Maria das Neves foi chamando os nomes e pediu que abrissem à vez o esperado envelope e foi um baque colectivo que a surpresa não era a desejada.O tio velho rasgou a cola e atónito encontrou um cromo de uma estrela de futebol, roído nos bordos, a cor esmorecida: ela lembrou-lhe que era o cromo favorito dele quando ele tinha cinco anos e que por este tempo todo ela o havia guardado.Aos filhos do velho tio, Maria das Neves dava dinheiro; mas eram notas antigas, que já haviam sido postas fora de circulação, apenas de valor estimativo e que ela fez questão de lembrar que tinha sido a prenda deles, num Natal perdido no tempo, sem tempo de pensar nela, num despacho rápido do assunto sem mais preocupações…O olhar de Maria das Neves embaciou-se e pediu ao primo do meio que retirasse uma mecha de cabelo fino e louro, o primeiro caracol dele que ela havia estimado por tanto tempo, de dentro do seu envelope.Ao tio novo coube uma carta dentro da carta: tinha sido enviada para ela num tempo de guerra, num Natal passado numa antiga colónia ultramarina, acompanhada de uma fotografia a preto e branco, arma nas mãos, o quico à fadista.Do tio gordo, um desenho a lápis, dois bonecos, um grande outro pequeno com uma legenda encavalitada dizendo “gosto muito da Maria”.A prima direita temeu e nervosa, a mão trémula rasgando o papel do sobrescrito, olhou para Maria das Neves implorando-lhe que não a fizesse passar por aquilo: de dentro do envelope azul celeste um bilhete engelhado, que a anfitriã pediu que ela lesse em voz alta. A prima torta arrancou-lhe o papelinho das mãos numa raiva demonstrativa do seu conteúdo e alto, quase soletrando leu “ a quem a velha da Maria das Neves deixará a fortuna?”. Maria das Neves adiantou-se e revelou que a resposta ao bilhete estava no envelope da outra prima e sem esperar que esta o abrisse, declarou em voz alta: “à cabra da filha é que não deve ser!!!”O constrangimento era total e absoluto.A campainha soou e entrou a filha de Maria das Neves.Dava a meia-noite e o envelope vermelho vivo foi entregue de mãe para filha.“- Entrego-te o meu bem mais precioso: o primeiro cartão de aniversário que o teu pai me enviou”.Ela voltou à realidade e encostou o cartão com a figura do Pai Natal ao peito. E leu alto para se ouvir, para ouvir a voz de Maria das Neves, sua mãe: “Natal é sempre que estou junto de ti”.

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À minha Mãe

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(08-11-2005)