Quem ensina quem



 
 
As mãos enterradas fundo nos bolsos, o queixo um pouco deitado sobre o peito arqueando-lhe as costas largas, o olhar vigilante perante o desfile ruidoso daqueles pés pequenos que matraqueavam o soalho a compasso de gargalhadas e puxões de cabelo e fitas de bata armadas em laços farfalhudos.
O Prof. Ricardo de pé, mais alto que a sua altura por estar no estrado que vigiava a sala de aula, aguardava em silêncio que os novos alunos se acomodassem. A pasta de cabedal, manchada na pega e no fecho de metal pelo uso da mão, estava gorda de papéis.
Entraram vinte e três. Ele fechou a porta. Identificou-se como o Prof. Ricardo de Ciências Sociais e Humanas. Apercebeu-se da troca de olhares e algum pânico na cara daqueles miúdos de onze e doze anos. Tentou suavizar o ambiente e perguntou-lhes o nome individualmente: pela primeira vez haviam turmas mistas e só três no total daquela escola. Organizou o discurso, tentando disfarçar o seu nervosismo com as mãos ainda escondidas, um tom de voz demasiado baixo para que no fundo da sala se pudesse escutar, começando por explicar que “eles” faziam parte de um projecto-piloto, único no País; que iriam ter disciplinas de que nunca teriam ouvido falar mas que ele, assim como os outros colegas estavam ali para os ajudarem.
E a primeira coisa a fazerem era aproximarem-se uns dos outros: pediu que dessem as mãos mas rapidamente um rapazinho sardento e de nariz afiado concluiu que era uma tarefa impossível, por causa das secretárias dispostas como bancos de autocarro. O Prof. Ricardo mandou-os levantar e dirigiu-se ao altivo estrado e pediu que um deles tomasse assento à sua mesa e então daí, tentasse agarrar a mão dos outros. Gargalhada geral que todos perceberam a incapacidade.
O Prof. Ricardo pegou na sua secretária e levou-a para junto das dos alunos, puxando igualmente as mesas deles e pedindo ajuda, dirigiu as mudanças no meio de um reboliço barulhento, com muito arrastar e gargalhada à mistura, enganando-se uma e outra vez a chamar pelos nomes deles, o que só provocava mais riso entre todos.
No final, todos ficaram silenciosos a olhar para o resultado: agora havia um círculo perfeito e fechado, uma mesa redonda gigante. Sentaram-se e sem pedido, o Prof. Ricardo viu formar-se uma corrente de mãos, sendo ele o ultimo a atar as suas nas pequeninas que se lhe davam.
Percebeu de imediato que aquelas eram gentes especiais, muito longe das turmas problemáticas que até então havia tido e resolveu jogar tudo de uma só vez: distribuiu, fazendo correr os programas de mesa em mesa, um tema a ser estudado e debatido; seriam eles que levariam o material de estudo e apresentariam para os demais o trabalho feito em grupos; cada grupo teria um moderador e um orador.
Uma menina assustou-se e inquiriu o Prof. Ricardo quanto aos testes, quanto à maneira de recitar as aulas, quanto aos livros e o material a comprar…ele sobressaltou-a mais ainda quando, claro e bom som, decretou que não haveria testes ou exames com ele. Apresentou a bibliografia a procurarem os sítios onde deveriam ir, sublinhando o pormenor dum jardim junto ao sítio tal ou tal, ou uma casa de gelados onde deveriam experimentar o molho de morangos com amêndoas.
O grupo barulhento estava perplexo, sem saber se isso era bom ou mau.
Entrou a Prof. Teresa com um gravador pendurado e os alunos levantaram-se.
Ela fez sinal com a mão, num gesto leve de pluma que cai, para que se sentassem e beijou o Prof. Ricardo nas faces, ligou o gravador à tomada e com um dedo esticado calcou um botão preto que de imediato, fez soltar uma voz forte e rouca que proferia “OH! Lord, won’t you bye me?”.
Os dias passaram, as semanas, as férias escolares vieram mas sempre se encontravam: ou numa biblioteca ou se organizavam para irem professores e alunos ao cinema ver um filme sobre o nazismo e o colaboracionismo, ou uma exposição sobre Rodin, até mesmo à Ópera foram.
Um ano decorreu desde que o Prof. Ricardo havia esperado por aqueles miúdos, que agora que se aproximava o segundo ano desse projecto-piloto, tinham crescido.
A elas crescera-lhes os seios, a eles a voz tornara-se grave, um e outro olhavam-se de forma especial despertando para o amor.
O Prof. Ricardo também estava diferente, mas só por dentro.
Sentia-os não como seus filhos mas como homens e mulheres, amigos, leais, cúmplices de um só sentir.
O segundo dos anos terminou: fizeram uma festa, com muito riso, muita recordação, muitas lágrimas.
Os pequeninos já não eram pequeninos, tinham altura e personalidade definida.
Seguiram os caminhos da vida, um foi médico outra partiu para África para uma causa humanitária, outro cineasta aquela professora de linguagem gestual…
Passaram trinta anos.
Organizaram um jantar, ainda todos estavam vivos e juntos na mesma vontade de se encontrarem.
Os professores tinham falta de cabelo e rugas, reumático e muitos quilos a mais. Mas o sorriso e o brilho nos olhos era tão igual ao que passara.
O Prof. Ricardo bateu as palmas e pediu a atenção de todos.
A rirem e com muito arrastar de cadeiras, levantaram-se os alunos. A Prof. Teresa repetiu o gesto de pomba que levanta voo.
O Prof. Ricardo tirou os óculos que agora tinha de usar e falou do lançamento de um livro seu, que muito gosto tinha em que todos estivessem presentes nesse dia.
Alguém em voz alta, lá do fundo da mesa, gritou:
- “ Como arranjou tempo, sempre a dar aulas, para escrever um livro, Professor?”
Ele enfiou as mãos nos bolsos, nervosamente, as costas agora arqueadas do tempo e da vida.
- “ Depois que se foram embora, só leccionei mais dois anos…foram os piores da minha vida. Não aguentava mais…Não queria mais, sem vocês… Renunciei à colocação e fui demitido! Ainda bem! Senão não estaria aqui, agora, convosco que me ensinaram tudo”.
 
 
24 Janeiro 2006