A tomada de Al Ain

 

 
 
 
O amanhecer despontara nevoento e encarniçado, pelo calor que iria fazer pelo dia fora.
O castelo de Al Ain erguia-se altivo, porém assustador envolto naquela bruma misteriosa que não deixa ver com a perfeição que se pretende, todo o seu contorno.
E os olhos dela, habituados a planícies rasgadas de oiro e sol não estavam preparados para aquela penumbra; nem o seu faro se tinha alguma vez destinado a sentir aquele aroma de fungos, bafio e coisa velha que se guardam sem tempo definido.
Até o silêncio parecía amordaçado no século, de tão abafado e denso se sentia.
Ela mantinha-se escondida, expectante na hora do ataque.
Havia vários meses que se alimentava de bagas e raízes como um animal, sempre vigilante naquelas ameias, cuidando para que as saídas e entradas lhe fossem todas conhecidas. Mas por mais que se mantivesse alerta não vislumbrava ninguém a entrar e como tal a sair. Só o Senhor de Al Ain costumava nas noites de lua cheia se passear nos torreões, deslizando como se não tivera pés, mãos presas uma na outra como agrilhoado a si mesmo estivesse, nariz adiantado a farejar perigo que não se via. E sempre, sempre de armadura cinzenta, fria e pesada.
E ela, invasora, certa que não houvera sido descoberta, inquiria-se porque se aferrolhava ele naquele esquife metálico se nada havia a temer. Este Senhor de guerra com nome que fazia tremer os seus inimigos não saía, não montava, não ordenava a seus besteiros que defendessem o seu escudo. Tão só na noite assomava como se o assaltante de seu próprio castelo fosse ele.
Ela manteve-se durante muito tempo a estudá-lo e sabia já os seus passos, conhecia as voltas da sua capa quando terminava a ronda de lua cheia.
Um dia, cansada de vigiar sem ter que se defender da ocupação do terreno de caça do Senhor de Al Ain que fizera havia muito tempo, muitas luas cheias, lançou o seu grito de guerra e de punhal em mão – que agia sempre só e por si – resolveu fazer-se ao estrado que conduzia ao interior do Castelo. E surpresa viu-o baixar, as correntes ferrugentas em ressalto largarem as conchas onde se anichavam, as portadas escancararem-se e no interior uma arrumação desoladora, sem sobressalto, mas também sem gente lá vivendo.
Tão só o silêncio.
Entrou cautelosa, punhal em riste preparada para defender o seu corpo e alma, atacar quando a isso se visse forçada.
Mas nada, só o silêncio.
E quando se descurou e encontrou uma côdea de pão levando-o à boca ávida, apareceu-lhe aquela figura nocturna perfilada de luz lunar, que a surpreendeu e não atacou. Antes pelo contrário: debaixo da sua cota de malha tirou um pão fresco, grande e loiro que lhe deu em grandes pedaços.
Ela matou a fome.
Mas não matou mais nada que aquele Senhor era o Senhor de Al Ain.
E perguntou-lhe onde estava o exército dele, os seus cavalos, a sua princesa.
O Senhor de Al Ain não lhe deu resposta.
Então, ela afastou-se e percebeu porque razão ele estava sozinho, agrilhoado a si mesmo; porque não se permitia ver o sol em vez da lua; porque razão aquele cheiro de fungo e mofo se propagava por vários hectares de terra de caça.
É que o Castelo do Senhor de Al Ain era o seu próprio silêncio. A sua masmorra.
E nada nem ninguém podia tomar tal fortaleza que o Senhor de Al Ain a ela se tinha rendido há muito, apreciando a si aquele mutismo castrador da vontade de mudar e conquistar além.
Ela saiu. Ele estava perdido dentro de si. Nada podia fazer por ele, pois o Senhor de Al Ain não o queria.
 
 
10 Outubro 2005