O almoço do Sr. Pê

 



Vestiu o casaco e as riscas acertaram com as das calças. Só a ausência da gravata e a nudez do pescoço lhe traziam um desconforto forçado pelo calor de um Verão hipocritamente informal.
Encheu o peito de ar e o seu excesso fê-lo tossicar. Uma e outra vez, seguida de um silvo. Mais de trinta cigarros por dia continuava a ser muito…”que se lixe”-murmurou.
-Falaste comigo?- ouviu-se
Não lhe apeteceu responder. Não lhe apetecia andar de fato completo sem gravata. Não lhe apetecia falar para ninguém e repetir o que já lhe tinham repetido. Sentia-se cansado e a organização do seu pensamento tinha-se perdido na noite mal dormida.
Saiu de casa, deu um puxão às bandas do casaco, levou os dedos ao colarinho e pensou que tudo se endireitaria na altura certa:”-Também?! Ninguém me questionará!! Já sei de cor e salteado o que me vão dizer…está tudo mal, não conseguimos fazer nada, ganhamos pouco, a concorrência é muita, blá, blá, blá”.
Fechou os olhos e o azul desapareceu sob as pálpebras leves como dois rasgões na face.
 
Pestanejou, humedeceu a vista, apurou os sentidos e dominou o cenário: haviam muitas secretárias vazias, muitos jeans, muito monte de papel, muitas rendas e linho.
Dispôs-se no centro da sala, as costas protegidas pelo apoio de uma mesa onde pudesse encostar e erguer-se, transmitindo a seriedade e a leveza do discurso.
E como lei universal, os outros agrupados ombro a ombro, formaram o U que é a forma côncava de ouvir. Com um espaço necessário e absoluto onde coubesse o escudo invisível entre patrão e empregados.
Falou pausadamente, baixo, por vezes ciciando, enfeitando as palavras com gestos suaves das mãos, passos curtos tentando a aproximação à atenção dos ouvintes.
O casaco agora largado numa cadeira, libertava-o um pouco da sua posição e sentiu o calor que os demais diariamente suportavam.
O silêncio que fez foi o fio condutor para a abertura às perguntas. Mas todos, incomodamente calados e de sorriso posto obrigaram-no a verbalizar a sua disponibilidade.
Mais um minuto eterno de nada.
E de repente, duas vozes em simultâneo, desgarradas, atropeladas uma na outra.
Calam-se as duas.
“Os nossos computadores não funcionam!”- pensou o Sr.Pê e sorriu; nesta brecha, soltou-se a questão e todos ouviram “Os nossos computadores não funcionam!”.
Respondeu. Repetiu a resposta de outros encontros. Simpatizou-se com a preocupação de todos e mostrou o entendimento bastante sobre a teoria da contrariedade.
-Mais perguntas?
E o arqueiro foi impiedoso:
-Que vai ser de nós?
A pergunta não levava só o sinal de interrogação no fim. Transfería para ele a responsabilidade da resposta na obrigação do provir. E com testemunhas.
Tocou no casaco despido e apalpou o maço de tabaco, certificando-se do seu amparo.
E o silêncio chiava no ar, dando tempo a que se olhasse para a alcatifa de 19 anos amachucada, se desenhasse uma expressão de adulto para uma criança.
Enfrentou e confrontou. O escudo defensivo estava rachado.
-A que se refere?
-Ao nosso futuro!
-Que futuro? Como assim???
-Ao passar dos anos e a restarmos só dois! Que nos vai acontecer? Vamos ser diluídos noutro grupo?
-Ouça, eu só lhe posso transmitir a minha opinião…
-É isso que eu pretendo!
-Eu estava a dizer, que só lhe posso transmitir a minha opinião e ela vale por aquilo que é: uma opinião! Decerto você terá mais consciência e noção do que se passa no seu serviço, porque é você que está lá!
-Eu tenho a minha opinião!!
-E então? O que é que entende?
-Eu não entendo nada! Quero ouvi-lo é a si!
O Sr.Pê desejou fumar um cigarro.
-Aflige-me pensar que existem pessoas nesta casa que não têm entendimento sobre coisa nenhuma…quem está na luta é que a deve conhecer. Se você se queixa e depois me diz que não entende nada, que posso eu dizer?!
Pausa.
O arqueiro não baixou a guarda e olhou o Sr.Pê de frente. O Sr.Pê cresceu uns centímetros, levou as mãos ao cinto e ajeitou as calças ao seu lugar. Mirou o arqueiro e este continuava ali: não se esfumara, não desaparecera. “Mas o que vem a ser isto??? Que chatice!”-pensou o Sr.Pê.
Parecia que todos os outros se tinham mimetizado com a sala, as secretárias, os computadores, o fax…só o turquesa da blusa decotada do arqueiro ressaltava do cenário uniforme.
Foi então, que reparou que essa mulher pequena tinha dado como que um salto e os dois, de testa colada, olhos nos olhos, sentiam o calor do hálito do outro.
O Sr.Pê sentiu-se incomodado, levou a mão ao nó da gravata imaginária, recompôs-se, sorriu e conseguiu assim que aquela imagem se afastasse o suficiente para a enquadrar no grupo.
-Sabe, minha Srª, a minha opinião é que devemos estimar o bom que temos, cuidar para que ele não se perca. Sei que o que fazem no seu serviço é especifico, técnico e implica um conhecimento sobre legislação. Eu acho que assim se deverá manter: quem faz este serviço tem outras capacidades e seria desconfortável para os seus colegas e até para os nossos clientes e parceiros que tudo se misturasse. Não penso em diluir o serviço noutro. Não penso em acabar com este serviço. Não penso entregar a terceiros aquilo que nesta casa se sabe fazer.
Mas isto é a minha opinião! Afinal, qual é a sua, minha Srª?
A senhora sorriu.
-Sabe, Sr.Pê…a minha opinião é igual à sua.
O Sr.Pê desafiou-a:
-Vá à questão!
-Deixe-me fazer uma introdução, por favor: é claro que eu tenho opinião! E o senhor, Sr.Pê sabe que eu tenho opinião; e o senhor, Sr.Pê até sabe que eu sei que a sua opinião è igual à minha! Mas, para que as coisas funcionem têm que nos dar os meios, as ferramentas, dotar o sector de pessoas…
-Sem dúvida!-interrompeu
E concordava sinceramente com aquela mulher pequena. E sorria e ela também. E tudo parecia verdadeiro, sem escudos nem protecções, sem receio ou bajulação. Sentia-se bem, tinha uma leveza em si que o desarmava de um discurso esgaçado pela repetição sem voz de retorno. “Mas quem é esta? A cara não me é estranha…eu conheço-a, eu conheço-a…mas donde? Donde??? Em que altura? É preciso ter lata! E não pára de me olhar nos olhos! Que grande lata que a gaja tem!”-remoía.
Recompôs-se. Retirou o suave do sorriso mas a dureza da expressão não conseguiu retomar.
-Então? Penso que respondi à sua pergunta!
Ela não se fez rogada:
-Não só respondeu como respondeu exactamente aquilo que eu queria ouvir…
“Esta gaja é uma descaradona! Aquilo que eu queria ouvir? Mas o que é que ela quer??? Se há alguém que queira alguma coisa aqui, ela não será decerto! Olha-me esta, agora”-prosseguía no seu monólogo surdo.
Voltou-se para os restantes e ignorou-a:
-Mais perguntas?- disse em tom grave.
-Sr.Pê…-ouviu-se.
Mas a mulher pequena insistia em olhá-lo quase num desafio: observava-o e cada gesto parecia aguçar mais a sua curiosidade. Tomou-a nos olhos:
-Não ficou zangada comigo?
-Agora! Ainda por cima disse-me aquilo que eu queria! Não estou nada zangada! Muito pelo contrário!- respondeu a mulher pequena rindo abertamente.
Ele sorriu e todos o acompanharam.
Tudo se amenizou, o ar ficou mais puro, ouviram-se pequenas frases, as pessoas ganharam vida e movimentaram-se num pé e noutro, preparadas agora para todas as perguntas que tinham em si.
-Sr.Pê, ouvimos tanta coisa, tanto boato, conversa de corredor…É mesmo intenção do Sr.Pê chegar a acordo com alguns dos colaboradores para a sua saída?
-É verdade. Acho que há gente nesta casa que merece descansar. Já deram muito. Como sabem, a alteração deste governo à lei da reforma prevê que muitos de vós ainda cá andem por mais alguns anos. Talvez demasiado para aquilo que já trabalharam e viram por aqui. Posso assegurar-vos que há dinheiro para essas pessoas irem para casa antecipadamente.
Onda de murmúrios.
-Bom…se não têm mais questões…-e procurou o olhar da mulher pequena.
-Eu, Sr.Pê!- ergueu-se um braço no ar.
-Quem é você?-perguntou, seco.
-José, eu sou o José.
-Continue…
-Sr.Pê: A situação dos não-fumadores está resolvida; E a dos fumadores? Fomos atirados para o vão de escadas, tendo que sair do nosso posto de trabalho, com todas as implicações que essa ausência significa! Sentimo-nos um pouco perseguidos! E, claro! A produção baixou!
O Sr.Pê adquiriu a rigidez no semblante que todos lhe conheciam.
Deu uns passos adiante e perto do José, soprou-lhe:
-Sabe, eu também sou fumador. Já lhe passou pela cabeça que apesar de eu ser o patrão também sou obrigado a fazer coisas que não quero?- e o tom de voz subiu.
-Então, Sr,Pê, conte-nos: Como faz quando está no seu gabinete? Vem para as escadas? Ou fuma às escondidas?- disparou a mulher pequena.
O Sr.Pê voltou para perto do seu casaco. Mirou a mulher pequena com os olhos semi-cerrados. Sentiu na boca um travo acre, o coração disparado e a vontade de gritar como no tempo de estudante.
-Sabe, no meu gabinete tenho uma varanda e a solução…
-Nós não temos varandas!- retorquiu a mulher pequena.
Então o Sr.Pê irritou-se e deixou que livremente essa ira mansa se soltasse:
-Que espera? Que eu mande demolir a minha varanda?!
A mulher pequena soltou uma gargalhada, dobrando-se pela cinta e sacudindo a cabeleira farta para trás; bateu as palmas duas vezes e riu novamente com os olhos brilhantes dirigidos a ele.
O Sr.Pê ficou desconcertado.
Não sabia se havia de rir e acompanhá-la ou gritar “Silêncio!” e terminar de vez com a reunião.
Apercebeu-se, então que tinha perdido o controle da situação de uma forma simples e infantil mas tão eficaz e manipuladora: pelo riso.
E como uma pedra que atinge de raspão o espelho de água e salta e ressalta, assim o riso dominou todos em ondas de vai e vem.
O Sr.Pê tentava falar mas ninguém o escutava. Estavam todos muito ocupados em saborear o riso uns dos outros. Havia mesmo uns quantos que já se tinham afastado, conversando entre si, mantendo aquele agudo que a garganta emite quando solta uma gargalhada.
Elevou a voz:
-Bom, creio que alguns de vós almoçam comigo…
Não teve resposta, a dispersão continuou.
-Então é agora que se impõe o tal cigarro! – gracejou, metendo a mão no bolso interior do casaco abandonado.
E dirigiu-se para as escadas onde já um grupo se deleitava com os prazeres do fumo.
Agora e ali eram todos iguais.
 
O restaurante, na sua esplanada verdejante, vestia-se de um calor envolvente e a alvura das toalhas contrastava com o cinzento da calçada portuguesa.
A bela moradia do Sec.XIX transformada em casa de pasto, aportava às pessoas um brilho especial, uma disposição para o bem-estar.
Arrumaram-se à mesa, após algumas alterações de “senta-te aqui”, “deixa-me ficar aí”, “Sr.Pê fique no meio, por favor”.
As ementas foram distribuídas: o menu consultado e os vinhos recomendados.
E o Sr.Pê experimentou um momento de solidão enquanto os demais trocavam gostos e receitas a propósito da lista em mãos. Ninguém o olhava e ele olhava todos.
-Eu já escolhi! – disse a mulher pequena fechando a capa do cardápio.
-Muito bem. O que vai ser? E vocês? Já decidiram? – e o Sr.Pê levantou o indicador como sinal para o empregado de mesa.
-Bem, traga cinco doses disto e mais três de bacalhau… o que falta? – disse, lançando olhar pela mesa.
O empregado anotou os pedidos e repetiu alto as preferências dos dez comensais.
Alguém disse:
-Gosto muito de bacalhau! Não tem que enganar, é sempre bom!
O Sr.Pê achou que devería demonstrar a sua concordância com aquela preferência e agradar aos seus parceiros:
-Quando vou para fora, tento sempre arranjar um restaurante português. Assim há sempre a possibilidade de comer o nosso bacalhau. Há duas semanas estive em Nova Iorque…
-Em Nova Iorque? Em Nova Iorque?! – disse uma mulher que se sentava ao lado do Sr.Pê.
-Sim, ali na zona de Manhattan. Há lá três restaurantes portugueses. Mas tem um onde sempre vou. Aliás, faz comida portuguesa e brasileira. É óptimo!
O constrangimento apoderou-se da mesa. Os convivas param o seu talher de couvert no ar, em riste brilha a manteiga derretida pelo Verão, o pão a pender migalhas, o copo a meio caminho entre os lábios e a mesa…
O Sr.Pê resvalou a pequenina faca na casca endurecida do queijo que assentava no prato e aquele som de chicote acentuou mais ainda o fosso da confissão.
-…e peço sempre bacalhau…à Gomes de Sá que é o meu favorito… - rematou baixinho.
E levou o copo à boca engolindo todo o vinho avidamente. A frescura do travo cítrico pareceu acalmar a secura que de repente sentiu tomar todo o seu corpo.
Apercebeu-se do seu erro e a cabeça em turbilhão procurava uma saída airosa mas, só sentia calor devido à reacção do vinho no organismo debilitado pela falta de comida havia várias horas.
A mulher pequena ergueu o seu copo, olhou em redor e saudou:
-À nossa! – e à semelhança do Sr.Pê, virou o copo de um trago.
Olhou para ele com os olhos lacrimejantes do esforço.
Todos os outros levantaram os seus copos e beberricaram acompanhando o brinde.
O homem que se sentava diante do Sr.Pê falou:
-Há sempre um português em qualquer parte do mundo. Para qualquer lugar onde a gente vá sempre encontraremos um português!
-É bem verdade – concordou o Sr.Pê.
E todos fizeram um aceno de cabeça afirmativo.
-Pois eu não os consigo entender! – disse a mulher pequena.
-Como assim? Não percebo! Desculpa, não me consigo recordar do teu nome…tenho alguma dificuldade em associar a cara ao nome…por vezes, não consigo mesmo lembrar-me… - confessava o Sr.Pê semi-cerrando os olhos.
-Maria – disse a mulher pequena
-Maria! Maria, claro!!! – e o rosto do Sr.Pê iluminou-se como se de repente tudo fizesse sentido, tudo ficasse claro.
-Não me leves a mal, é que são tantas as pessoas! – e aproximava-se com o tratamento na 1ªpessoa.
-Mas, dizias que não os entendias…quem? – prosseguiu com um tom natural e muito mais despreocupado.
-Aos emigrantes!
-Continuo a não perceber…
-Por que se sujeitam lá fora, entre desconhecidos a vidas que aqui, decerto, nunca aceitariam?! Por que razão quando estão longe choram e falam de saudade e quando aqui voltam só sabem dizer mal do seu País?! Não consigo percebê-los…
-Eles são pessoas que procuraram uma vida condigna, que quiseram dar aos seus a oportunidade, que talvez, a terra deles lhe negou. – disse tranquilo o Sr.Pê.
-Isso não me convence! Porque falam, então de saudade? O Sr.Pê sabe que saudade, a palavra “saudade” é uma palavra portuguesa! Não tem o mesmo sentido em mais nehuma língua ou povo como tem para nós!!!
-Escuta…há sempre duas vertentes! – e fazia o sinal de vitória.
E o almoço parecia ter-se reduzido a um jogo de ténis onde dois disputam e os restantes oito representam a assistência.
Ela retorquiu:
-Há sempre duas vertentes, sim! Aqueles que querem aguentar o barco cá pela nossa terra e os que não têm coragem! – e esticou o braço complementando-o com um indicador delgado na direcção do Sr.Pê.
Ele não resistiu, segurou-lhe a mão e baixou-a até derrotá-la sobre a toalha. Sentiu o calor da mão dela na concha da sua mão. Ela olhava-o nos olhos. Ele não viu embaraço, nem pudor nem medo nos olhos dela. Isso intrigou-o. Geralmente não o fitavam mas esta mulher Maria pequena olhava-o à mesma altura.
-Os dois aspectos de uma mesma questão não podem ser extremados. Isso é bom para ti que és uma mulher nova! Quando tiveres a minha idade vais ver as coisas de outra foram! – disse o Sr.Pê em tom tão baixo que todos vergaram a cabeça na tentativa de o escutar.
-Pois! Mais galanteios como esse e tenho o dia ganho! – gracejou Maria.
Mas ele continuou com o mesmo ar sério:
-Já tive fases na minha vida muito dificeis de ultrapassar… - e fechou os olhos como se o facto de os cerrar fizesse desaparecer da sua memória aquilo que o afligia.
Foi nessa altura que ela reparou no fio de ouro fino que enfeitava o pescoço já com rugas e na barba mal desfeita que branqueava alguns pontos do queixo do Sr.Pê.
Achou-o frágil e comum.
-Tive que tomar decisões. Decisões que implicavam a minha família e o seu bem-estar e não só a minha própria posição. Tive que optar por seguir aquilo que queria para a minha vida e que estava de acordo com a minha consciência…
-Tais como? – interrompeu ela.
-Oferecerem-me um cargo e dinheiro e achar que o que eu merecia era muito mais do que isso!
-E então? – continuou ela insistindo.
-Então, demiti-me!
Todos sem excepção o tinham ouvido.
O sol guinou e começou a banhar a mesa e a escaldar dois dos convidados.
Alguém fez alusão aos malefícios do sol na cidade e outro agravou ainda mais essa ideia, dizendo que sol após a refeição, a digestão não se faria.
O Sr.Pê manteve o discurso:
-Eu não sou louco para deixar a minha família desprovida! Mas também não seria capaz de encarar a minha família se tivesse que aceitar tudo o que me oferecem! E, depois, alguma coisa se haveria de arranjar! Estava desempregado mas de certeza que haveria de dar a volta à coisa…
-Ganda maluco! – exclamou Maria.
Houve risinhos, outros emudeceram, o Sr.Pê nem sequer pestanejou.
-Sabes o que quero dizer com isto, não sabes? Que o carácter tem muito mais valia do que se se concordar e aceitar tudo! Que devemos dizer aquilo que nos vai na alma, sem receios ou tabus, independentemente do cargo que ocupamos.
-Sabe o que me chamam quando tomo posições dessas? Mau feitio! – respondeu Maria em tom sarcástico.
O Sr.Pê então recordou-se de Maria, anos passados, num convívio da empresa, em que gracejava e ele ao passar lhe teria dito que ela tinha “mau feitio”. E lembrou-se com toda a clareza da sua resposta: “- Frontalidade, Sr.Pê!”. E lembrou-se igualmente como durante dias a fio aquela voz lhe tinha martelado o seu pensamento, desafiando a sua rotina, o seu método, a sua tranquilidade.
- Mau feitio têm os estúpidos que não aceitam que não sabem fazer e têm a prosápia de concordar com o patrão, só por que é o patrão. Quando eu ainda não era patrão, nunca me encolhi.
-Diz isso porque pode, Sr.Pê.
-Digo-te que deves continuar a ter esse “mau feitio”… - e sorriu-lhe amigavelmente.
Abriu a carteira, escolheu um cartão de crédito e pagou o almoço.
De semblante fechado deu por fim os trabalhos, despediu-se agradecendo a disponibilidade de todos e ressalvando que a porta do seu gabinete sempre estaria aberta – incluindo a sua varanda – e entrou no seu carro negro, onde o motorista o aguardava com o ar condicionado ligado.
Não olhou mais para trás para os ver afastar em direcção à empresa.
-Julio, para o Marquês! Vamos trabalhar, seu “ganda” maluco!
 
26 de Julho 2005