S-M, sff.





Alguns anos tinham passado desde que lera aquele livro estranho, bizarro até, mas que a tinha marcado desde então.
Não eram só as estórias contadas na 1ª pessoa, eram sim, o estilo de relato, a veracidade da crónica numa Capital que vive quando todos dormem, um sub-mundo que no fundo é uma alavanca daquele que se conhece à luz do dia.
E tudo lhe parecera mais fantástico quando pesquisando, encontrou mulheres e homens que sendo altas individualidades no mundo aceite como “normal” o eram naquele universo ao contrário, como que a fazerem o pino, consideradas banais.
Tantas vezes lera e relera, folheara passagens, tomara notas a lápis nas margens, marcara em rodapé exclamações anotadas, que o livro estava desmembrado da sua lombada, quebrado na sua espinha dorsal mas também tão macio e facilmente manejável que era um gosto aspirar aquele odor próprio e único que se liberta do papel passado muitas vezes pelos dedos.
Quis o acaso que ela se encontrasse com o autor desse livro tão especial.
Era uma festa promocional de um livro de um escritor sem grande talento, conhecido de ambos por razões diferentes: ela fora porque não falhava um lançamento daquela editora; ele, porque o seu nome já conhecido era uma chancela de qualidade para qualquer obra mesmo que não tivesse valor literário algum e, a isso a editora o obrigava.
Assim, ele deambulava por entre prateleiras e gentes virtualmente intelectas, mão esquerda no bolso do velho jaquetão de bombazine, cotoveleiras gastas de falsa pele, copo de bourbon à direita. Ela perfilava-se, aguardando a vez de receber o autógrafo com pedido de dedicatória personalizada junto do autor.
E como vários tinham sido já os goles daquela bebida americana o corpo acusava: deu-lhe ao de leve um encosto de ombro nas costas dela, desculpando-se entre dentes sem olhá-la sequer. Ela sorriu-lhe e chamou-o pelo nome próprio. Ele voltou-se, pois invariavelmente só o conheciam pelos dois apelidos juntos: reparou nos olhos verdes dela, brilhantes como os de um gato, defendidos por mechas de pestanas grossas e negras que lhe sublinhavam mais o olhar.
Ela manteve o sorriso e repetiu o nome de baptismo dele, cantado de uma forma melodiosa que lhe emprestava uma nova sonoridade como se de um novo nome o chamasse.
Trocaram primeiro banalidades, depois ele ofereceu-se para lhe trazer uma bebida que ela simpaticamente recusou e que ele na oportunidade,aproveitou para voltar a encher o seu copo. E nesta confraternização inocente ela trouxe à baila o livro dos seus encantos, recitando partes, defendendo a pessoa do autor, confessando-se rendida àquela marginalidade.
Ele engoliu de um trago o bourbon já aquecido na mão pelo tempo de escuta e recomposto atirou-lhe que aquilo era um tempo passado. Mas ela insistente e segurando a manga de bombazine, prendia-o numa atenção que ele não queria; entre um sorriso e um esgar, uma tentativa para voltar a enfiar a mão no bolso do casaco, ele desmistificava o valor de tal livro com alguns anos e ela lá voltava ao mesmo, irritantemente hipnotizada pelas estórias de um bas-fond e ele a manobrar a fuga estratégica dizendo que o chamavam até que, distintamente ouviu dos lábios dela, não num sussurro mas claro e alto que o desejava, tomando para si o lugar daquelas personagens misteriosas do livro “S-M, sff”.
Ele emudeceu perante a proposta ousada e olhando-a sério notou-lhe o peso e gravidade de tal convite.
Ela nem hesitou e mostrou-lhe a chave do apartamento que os esperava num subúrbio da cidade.
Novo bourbon e partiram.
Ainda mal a porta se tinha fechado nas suas costas e já ela de olhar seráfico e passando a língua nos lábios, arrancava nas mãos a roupa que a cobria desvendando uns seios empinados que balouçaram pela força do rasgão exercido.
Ele, completamente surpreendido pela revelação da mulher que ali mesmo se fazia em comparação com a melodiosa rapariga que o tratara pelo nome próprio, não sabia o que fazer e o bolso esquerdo pendurado pelo vicio de aí meter a mão parecia agora demasiado pequeno e apertado para aí esconder-se. Ela avançava para ele, afagando-se, tomando os peitos nas mãos como quem pega numa taça de champagne e perguntando-lhe se ele gostava do que via e se a queria provar; ele constrangido, arrependia-se naquele momento de ter escrito tal livro e não sabia como reagir. Felina, uma perna à frente da outra como num plateau, as pestanas batendo a compassos certos, foi-se descobrindo e totalmente nua escancarou-se na frente de um rosto abismado pelo espectáculo oferecido.
Não queria olhar, não queria ver, mas ela insistente como no lançamento do livro, segurava-lhe o rosto e obrigava-o a admirar o sexo calvo enfeitado de uma pequena argola de metal onde brilhava ofuscante uma pequeníssima pedra preciosa. Ele tentou fugir às garras daquela mulher transfigurada e implorava-lhe que o deixasse ir mas ela, batia com força nas próprias nádegas para logo a seguir o açoitar nas dele e repetitiva como num eco miado, suspirava “S-M,sff, S-M,sff”.
Atónito, perguntou-lhe se ela alguma vez tinha percebido o que aquele titulo queria dizer, mas ela tão imbuída do papel que a si atribuíra à semelhança de uma das protagonistas da estória não o escutava e fervilhando louca, murmurava perseguindo-o se queria que lhe batesse ou se preferia chicoteá-la nas coxas ou morder-lhe os seios.
Ele correu na direcção da porta mas ela atacou-lhe os flancos de bombazine, tombando-o.
Um grito abafado de socorro saiu da garganta dormente de bourbon; ela virou-o e sentou-se de pernas afastados, o brilho do piercing muito perto do rosto dele, um “S-M, sff” novamente proferido.
Exausto ele exigiu que ela dissesse o que entendia daquele titulo.
Ela, ofegante e olhando-o incrédula respondeu “Small-Medium, sff”, ou seja,”passar de pequeno a grande, se faz favor”.
Então não era assim que se agitava um homem, que se encantava um homem para que ele crescesse na sua vontade, no seu ânimo, na sua virilidade?
Ele riu-se desbragadamente e baixo, muito baixo mesmo, soprou-lhe: “Sado-Masoq. Sff” e ainda num tom mais baixo, que a obrigou a encostar o ouvido à boca dele: “São tudo estórias, tudo irreal…e há muito, muito tempo que eu perdi o interesse…”
 
 
19 Dezembro 2005