Estória de uma árvore

 
 
 
 



Olharam-no como se fosse uma aparição.
 
Ficara-lhe o gesto dos tempos de seminarista, dedos entrelaçados no fervor da oração em que se prendia o terço, a concentração e a essência numa concha, sinal pequeno do que é o homem perante a obra maior, a humildade a caber num pedaço de mãos.
Tinha dedos delgados e compridos, punhos fortes e ainda assim de uma elegância que não suspeitava que suportasse com tal leveza as pilhas de livros, que como ajudante do padre bibliotecário, tivesse de carregar.
Era ágil mas delicado, rápido mas harmonioso, cumpridor sem ser subserviente, gostavam dele e ele parecia não desgostar de ninguém.
 
Era um bom menino no seminário, um bom filho em casa.
Mas chegada a hora dos votos e apesar de tantos anos entre paredes de silêncio, devoção a um só, estudo, o caminho da castidade, o exame final deu-lhe um chumbo e aprovado mesmo, só teve a vida comum de um homem como os outros. 
 
Talvez que olhos mais atentos lhe tivessem atinado que a trama dos dedos se forçava e por vezes até tremia, que o terço balançava ao invés de ser rodado nas suas contas, e o gesto de fechar as mãos ao corpo mais se assemelhava a um tique do que a um acto de pura fé sentida.
Mas ninguém o podia acusar da sua manifesta diligência na biblioteca e desvelo tantos com que tratava os livros, sempre a arrumar, arquivar, a trazer e buscar.
Onde o queriam achar fora das obrigações de reza era lá, logo dispunha os dedos naquele entrelaçado côncavo, de pé se estava sentado em sinal de respeito aos que chegavam, partindo em silêncio após, para não perturbar os que aí permaneciam no estudo.
 
Ficou no seminário por muito tempo, homem feito, de barba comprida e tal era boa a sua alma que nenhum padre teve a condição de o mandar embora. De casa já nada havia, nem paredes nem memória, por isso não tinha saudades nem a dor dessa ausência, apenas uma concha de mãos a recordar que tinha nascido fora daquele sitio onde lhe parecera ter estado por toda a sua vida.
 
Certo dia não deram com ele, procuraram até à exaustão, gritos para cá e para lá, tocaram o sino mas nada, ainda foram ao que restara da casa de infância mas o mesmo de zero, esfumara-se como se nunca houvera existido. Repetiram a busca no dia seguinte e no outro chamaram a Guarda, e ainda por mais dias e depois cada vez mais espaçado diziam o seu nome, e depois já nada diziam, só pensavam ou lembravam-no nas graças da oração, mas não todos, só o padre bibliotecário que já estava muito muito velho e precisava mesmo dele.
 
Passou-se um ano, mais um par deles e ainda um outro.
 
Quando o padre bibliotecário foi a enterrar, descobriram entre as suas coisas, um velho livro em latim, escrito e desenhado à mão, sem denúncia de autor, intitulado  "Árvore com vidas". Era belíssimo, com ilustrações a carmim, açafrão e ouro e minuciosamente descritivo quanto à plantação de uma árvore com propriedades extraordinárias que confería a imortalidade àqueles que dela nascessem como seus frutos. Não que os comessem, mas dela brotassem.
O livro foi imediatamente levado e nunca mais foi visto.
 
Quando a Primavera veio e as primeiras flores rebentaram, rosadas, pálidas do frio mas açucaradas do morno que já ía acontecendo, a árvore junto à sepultura do padre bibliotecário rachou o seu tronco e exibiu o seminarista desaparecido havía uns anos.
Vinha de sorriso nos lábios, a barba comprida, os dedos entrelaçados no fervor de uma oração.
 
Vinha nú.
 
Talvez que olhos mais atentos tivessem apercebido que a concha composta das mãos, escondía as notas copiadas para as palmas dia após dia, ano após ano, de uma tradução laboriosa e complexa do latim arcaico de um certo livro achado à sorte, e que ter-se enterrado a si mesmo sob as raízes de uma árvore significava quiçá um suicídio.
 
Mas o que ele quería era mais tempo para aprender e isso só a árvore lhe podía dar.