A mulher dos gatos

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Não consigo recordar a minha infância sem me lembrar dela.
Creio mesmo que desde sempre e talvez muito antes de eu ter nascido, ela já morava naquele bairro, naquela casa de aspecto sinistro que servía de incentivo para as crianças comerem a sopa rapidamente.
A mulher dos gatos - como toda a gente a chamava - era intemporalmente velha.
Sempre a conheci de cabelos brancos a esvoaçarem fugidios de um chapéu de palha carcomido na aba, vestes negras como panos de teatro em decadência e uns socos de madeira gasta pelos passos. O mistério estava no anel que usava, faíscante no indicador direito, engelhado de anos que para mim eram mais de cem.
O grupo do bairro, do qual eu era um dos membros fundadores, tinha inventado uma história sobre aquele anel de pedra vermelha, que diga-se, atravessou os tempos até aos meus filhos e muito provavelmente irá perdurar até ao deles. Segredávamos que a mulher dos gatos era a mulher de um pirata famoso que ao longo das suas investidas em ricos barcos espanhóis muito ouro e pedras preciosas havía recolhido, sendo que aquela jóia era única e decerto, tinha poderes especiais.
Mas à noite, quando o sono não me quería, perguntava-me porque razão a mulher dos gatos não usava os poderes do anel para ter uma casa melhor ou comprar um chapéu novo ou até mesmo, comprar uns gatos sem defeito nem olho vazado, orelhas roídas e peladas no dorso.
É que a mulher dos gatos era a mãe de todos os gatos do mundo.
Falava com eles coisa que nunca ninguém entendeu, mas os bichos - acho - liam-lhe até a alma; ou então eram os poderes fantásticos do rubi daquele anel que os enfeitiçava e fazíam segui-la como um rebanho para dentro de casa.
De quando em vez, o bando do bairro acocorava-se, entre risos abafados e encontrões, junto ao muro da casa dela e munidos de seixos e gravetos mirávamos a pontaria aos felinos esparramados pelo jardim. Nunca entendi até hoje como a mulher dos gatos adivinhava que nós ali estávamos: surgía como uma estaca negra à soleira da sua porta, apenas o indicador guarnecido da jóia rara a apontar-nos a falta que ficara por cometer e claro, que dispersávamos de imediato, cada um mais assustado que o outro, uma e outra derrapagem na fuga, um joelho chorando um fio de sangue que rapidamente limpávamos à palma da mão e depois lambíamos, (convencidos nós) para que não nos faltasse a força.
E sempre foi assim.
Eu cresci e o resto da malta também. Só a mulher dos gatos parecía ter diminuído de tamanho. E mirrou tanto, tanto, que um dia desapareceu. E com ela os seus protegidos de quatro patas.
Rondámos a casa, cautelosos, no temor de ver aquele dedo enfeitado a espetar-se nos nossos narizes e accionando os poderes mágicos, transformar-nos a todos também em gatos.
Parecía mesmo que aquela mulher velha havía regressado para junto do seu pirata, pois passou um par de dias sem a vermos nem ouvirmos o adocicado dos miados.
Organizámo-nos e com uma estratégia infalível tomámos a casa decadente.
E foi uma surpresa quando nos deparámos com um interior ricamente mobilado, quadros enormes, um lustre gigantesco igualzinho ao de um filme de capa e espada, fofos tapetes que abafavam (felizmente) os nossos passos arrastados pela comoção e ansiedade da descoberta. Não havía um único pêlo de gato a manchar aquela limpeza; aliás, não havía gato algum, nem mulher dos gatos.
Estávamos desconcertados.
Pela escadaria tomámos o andar de cima, vasculhando cada canto e já muito afoitos e descuidados, escancarámos as portadas altas de um quarto.
Nunca me esquecerei daquela imagem, de ouvir o meu coração troar como um tambor dilatando as veias do pescoço.
A mulher dos gatos estava deitada numa cama que parecía ter sido feita de lavado com ela lá deitada. Estava imóvel e de olhos abertos.
Desatámos a correr como nunca o havíamos feito, aos gritos estridentes, cegos a achar a saída.
E de repente senti que me chamavam lá de cima. E não tive medo. E quem me chamava sabía o meu nome... Estaquei. Voltei a subir e a aproximar-me da entrada daquele quarto.
Cheguei-me à cama e em bicos dos pés espreitei para a face da mulher dos gatos. Os olhos abertos, serenos, apontavam para o tecto. Olhei no mesmo sentido do dela mas nada vi. Só vi o anel no indicador direito a brilhar como labaredas.
Os gatos, acomodados na cama junto ao corpo da sua protectora aquecíam-na e um e outro prestava-lhe honrarías com uma áspera lambidela no rosto ou nas costas das mãos. Não sabía o que se estava a passar mas tinha a certeza que a mulher dos gatos não dormía.
Eu só sabía que não tinha medo, que de alguma forma os gatos e o anel de pedra preciosa me protegíam.
Um felino gordo de pelagem tartaruga veio enroscar a sua cauda felpuda à volta dos meus tornozelos esmazelados. Achei que era um sinal para deixar a mulher dos gatos entregue à intimidade da sua familia, dos que a amavam.
Ainda hoje me pergunto porque razão, antes de a deixar e chamar os meus pais, avisando que ela morrera, lhe retirei o anel dos poderes.
Não fiquei com ele.
Enterrei-o no jardim junto à árvore onde ela se costumava sentar a ler e a vigiar-me. A mim e ao resto do grupo.
O gato tartaruga seguiu-me nas minhas manobras e depois de com os dois pés eu ter calcado fundo o tesouro da mulher dos gatos, ele acomodou-se naquela terra, as patas dianteiras dobradas por baixo do peito, a barriga gorda babando o pêlo farto cobrindo o nosso segredo.

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(13-07-2006)