Tudo bem

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Entraram. Não a par, lado a lado mas ele adiantado dois passos em relação à figura dela, rebocada nas costas dele.
O restaurante, conhecido de longos anos, sofrera algumas renovações a nível da cor das paredes, as toalhas de mesa havíam deixado de ser de pano branco para se transformarem num quadriculado vermelho com um toalhete de papel a cobri-la condizendo com os guardanapos descartáveis dobrados em triângulo, um aparador de madeira aquecía o ambiente e enganava os clientes dando-lhes uma noção de lar.
Alguns dos empregados havíam partido para a concorrência mas a cozinheira fidelizava no tempero e tradição o que não se encontrava nas casas da moda.
Antero cumprimentou o Sr.Vicente, proprietário. Manuela fez um meneio e seguiu até à mesa onde desde sempre se sentavam. Agarrou o cardápio, abriu-o e deixou os olhos escorregarem pelos pratos do dia, as entradas, as sopas, a carne e o peixe, já quase em rodapé as sobremesas;Folheou e viu os vinhos, as aguardentes. Antero sentou-se à sua frente, ela pousou a lista de capa encarnada e ficaram em silêncio.
Azeitonas pretas avivaram o branco do toalhete, uma única verde britada, uma cesta de pão enfarinhado, um pires com manteiga em rolinhos, um paté de atum e um azeitão fatiado trouxeram o empregado de bloco e caneta em riste para as notas quanto ao pedido.
Antero lançou um olhar a Manuela e ela verbalizou, "Ainda nem vi a ementa..."; ele não se surpreendeu e também não lhe retorquiu que a ementa estava nas mãos dela desde quando se havíam sentado à mesa. Manuela debicou a orfã azeitona verde e ele, escondido agora detrás da capa vermelha do menú debitava devagar ao empregado: "Para abrir, umas ameijoas à Bolhão Pato, depois...veja se a ameijoa não é da branca, que eu não gosto... depois traga o cabrito à padeiro - não é borrego, não é assim?! - não, não pode ser que o Sr.Vicente só põe na lista o que é mesmo! Para as ameijoas, bem gelado um João Pires do JMF e para a carne, deixe cá ver... ah! Alentejo, um Cartuxa." Fechou a lista com força soando um estalo e olhou para ela na sua frente "Tudo bem?", que ela confirmou baixo "Tudo bem".
Ele agitou-se na cadeira e vincou por várias vezes o guardanapo; ela observava o movimento do dedo pressionando num vai-vem e recordou-o a afagar as costas da sua mão... havía tanto tempo que se perdera nas contas de quantos anos esse gesto não voltara.
Antero comía com apetite o queijo e aprovou o gole de branco servido. O empregado direccionou o gargalo ao copo de Manuela mas ela tapou o bocal e sorrindo disse que não podía beber. Buscou na carteira a caixinha de medicamentos e tirou um comprimido branco rachado ao meio que engoliu a seco. Antero notou-lhe a garganta a subir e a descer num nó: desejava tanto que ela não tomasse mais ansioliticos, talvez um copo daquele vinho a libertasse e a fizesse dormir logo mais à noite...
A travessa das ameijoas chegou anunciada por uma fumarada perfumada, o molusco escachado pela sua frescura oferecía-se à vista e ao gosto. Mergulharam os dois naquela saborosa actividade, intervalada por bocados de pão embebidos naquele caldo fino e apurado. Antero recordou um tempo em que prazeirosamente lhe oferecía a ameijoa na casca à boca dela, entreaberta pela oferta dele e a brincadeira que sempre lhe fazía e que ela sempre caía entre avanços e recuos: olhou-a de soslaio mas ela de olhos fixos no manjar parecía estar noutro mundo.
Manuela remoía para si como gostava de lhe dizer que o verdadeiro nome do prato era mais precisamente "ameijoas a Bolhão Pato" e não "à Bolhão Pato", pois tinham sido inventadas e confeccionadas em honra dele e não por ele. Mas agora, hoje e ainda amanhã não valia a pena. Aliás já nada valia a pena, estava tudo bem.
Antero empurrou de um gole o vinho para dentro de si. Uma lágrima traiçoeira apertou-lhe a garganta e desculpou-se dizendo que se tinha engasgado. Manuela apercebeu-se mas nada disse.
Foi o próprio Sr.Vicente que trouxe o cabrito, encarniçado do colorau e contrastando com o louro das batatas. Perguntou se também seríam servidos do arroz das miudezas que havía feito a hábil cozinheira, no prenúncio do desgosto dos farináceos. Não, estava bem assim, tudo bem.
Manuela serviu-se e saudosa perdeu-se na tentativa de apanhar uma batata que teimava em fugir, ao recordar quando ele atencioso a servía e lhe dizía "com um beijo, que sem o meu tempero a nada te saberá". Depois, passou-lhe a colher de serviço e ao tocar nos dedos dele, atrapalharam-se os dois, batendo o metal no fundo da travessa e fazendo saltar respingos de molho para a blusa branca dela. Ele agarrou o guardanapo vincado em forma de triângulo mas ela de imediato lhe aparou o intuito apenas dizendo baixo "está tudo bem, tudo bem".
Antero serviu-se, voltou tudo ao mesmo: ao mesmo silêncio de há vários anos, à mesma ausência de palavras e de emoção, ao mesmo esconderijo dentro de cada um deles.
Manuela lembrou-se e Antero também de infindáveis discussões, gritos, ameaças para num ápice caírem nos braços um do outro e entre algumas palmadas no traseiro ou nos ombros a "sacudir as moscas", rirem de si próprios e selarem o assunto com um beijo. Onde estavam agora? Para onde tinham ido esses momentos? Quando tinham deixado de falar, de achar que era importante falarem? A partir de quando tudo ficara bem?
Manuela escolheu leite-creme e Antero disse que estava bem, mas o açúcar queimado pelo ferro em brasa não tinha a forma do coração e o doce amargava na língua e na garganta para logo descer em fel arranhando as entranhas.
Ele tomou café, ela mais um comprimido.
Ele pagou, ela foi ao toilete.Manuela ficou a olhar-se no espelho. A imagem de um final de tarde em que fazíam amor pelo chão da sala iluminou-a para logo se apagar... Via-se e não se reconhecía, mas também não se inquiriu mais, apenas se sossegou que tudo "estava bem".
Saíu, ele à mesa não olhou o seu regresso, ergueu-se, despediu-se agitando a mão do Sr. Vicente, deixou-a passar à frente e a silhueta dela guiou-o num tempo em que a tomava junto ao corpo e lhe mordiscava a orelhinha pequenina, imitando o grunhir de um bácoro, coisa que a punha a rir como uma criança.
Ela agora não ria mas também não chorava.
Estava sempre tudo bem.
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(Junho/2006)

O regresso

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Nessa noite não pregou olho. Voltava-lhe tudo à memória em vagas ora quentes ora frias, consoante a ansiedade ou a felicidade lhe tomavam espaço.

Lembrava-se de tudo com nitidez, dos cheiros, dos sons, da boca seca, da pele arrepiada.

Voltar. Voltar à azáfama do antigamente, da correria velada, do tremor nas pernas, da paixão que lhe tirava o tino dos pés do chão, voltar a morrer por cada vez que subisse ao palco, voltar a sentir medo de se esquecer das linhas, voltar ao improviso da vida em meia dúzia de minutos quando a cabeça falhava e o coração desatado compunha palavras na sua boca que os outros engoliam como certas, as mais certas aliás.


Quando subiu ao palco a primeira coisa que fez depois de o pisar com o pé direito foi apalpar as cortinas, sentir-lhes a macieza e o peso dos anos, a absorção de muitas noites agora misturadas com um travo de naftalina. Afastou uma fresta e bateu-lhe na cara a plateia vazia. Fechou os olhos, encheu-a de gente anónima que de pé estalaram recordações e disse para si obrigado, obrigado e o som do bis encheu-lhe a barba rala e branca de um sorriso.

Quem o visse decerto acharia que chorava, ou que se entristecera, ou que tonto da idade espreitava o que não havia. Mas não, era só o brilho das luzes a reflectirem anos e mais anos a gastarem o cénico, as pancadinhas, as palavras supersticiosas, o gole de aguardente para enganar o frio do estômago, a troca de roupa no intervalo fumarento entre a pergunta da praxe sobre a bilheteira.


Chamaram-no: Se sabia o que fazer, onde se deveria resguardar enquanto os actores trabalhavam, a velocidade ao puxar o cordame para a abertura das cortinas, a atenção ao texto para o final dos actos.

Sabia, sabia tudo, apesar desta ser uma estreia nesse papel.



(Dezembro/2008)

O sobretudo

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Avistou-o sentado, aquele ar grave quase carrancudo que lhe conhecia parecia fazer parte da indumentária, um complemento ao sobretudo grosso cinzentão que lhe tornava os ombros mais quadrados.

Sentiu um aperto no peito.


Avançou, tocou-lhe na mão agarrada ao jornal, ele levantou-se e abraçou-a forte, vagarosamente, enorme na sua estatura, delicado no enlace.

Sentaram-se de mãos dadas, ela sentiu distintamente o calor dele amornar-lhe as suas vindas do frio de fora, o sorriso dele doer-lhe mais no peito.
Ele falou dos dias de sol por vir e do frio que os obrigava a chegarem-se mais um ao outro. Ela não foi capaz de lhe dizer, concordou com um aceno de cabeça, procurou dentro de si coisas bastantes que lhe mudassem a vontade mas não foi capaz.

Dizia que sim ao que ele lhe dizia e dizia não, nem sempre, à voz do peito, a quem falava fluente sobre a sua decisão mas emudecia-lhe o olhar quando achava que tinha chegado a altura.

Nunca seria a altura ideal. Nunca seria o nome do dia em que ele entenderia e nunca era também o carimbo que selava a coragem precisada naquele instante já tão adiado.
Nunca seria capaz de lhe dizer que o gostava como se gostam das coisas simples da vida, de homens bons que se zangam na ira da injustiça, daqueles que erguem o punho ao marcar-se a vitória. E nunca seria capaz de lhe dizer que no peito lhe faltava a lenha para queimar barcos e nadar até à margem só para agarrar a estrela do mar.


Por tudo isso, quando se levantaram ela enfiou a mão esquerda no bolso do sobretudo dele como sempre fazia. Por tudo isso ela voltou atrás para buscar qualquer coisa esquecida.
E por tudo isso ele haveria de a esquecer quando achasse no bolso o bilhete a dizer-lhe adeus.
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(Novembro/2008)

A caldeirada

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Entrei no tasco amontoado em forma de casa por umas tábuas ratadas de outros usos que tivera, mais pela necessidade de fugir das chapadas do sol que me comíam o pescoço do que propriamente pelo apetite que (não) tinha já perto da hora da degustação.
Estava fresco e uma luz quebrada permitia, finalmente, libertar as rugas dos sobrolhos que se esforçavam por proteger a vista.
Dirigi-me ao balcão mas nenhum empregado apareceu. Senti-me examinado pelos demais fregueses, que de lado e em viés beberricavam nuns copos atacarrados de vidro grosso. Antes que dissesse alguma coisa, um homem de costas largas como um armário vibrou-me um "Diga Patrão!", sem se voltar. Aproximei-me da cadeira onde se sentava, dobrado por uma barriga volumosa que o impedía à primeira de chegar ao chão: foi aí que notei que jazía um tacho largo ladeado pela sua perna esquerda, forte e musculada e a direita, que terminava num espigão grosso de madeira.
Fiquei atónito! Um homem com uma perna de pau!
-Vem para matar a malvada? - interrogou.
Eu estava sem palavra e completamente hipnotizado por aquele toco de madeira que lhe nascía das calças enroladas...
Mas também pela destreza com que manejava um canivete ferrugento e diminuto, ao rodelar as cebolas chorosas a que aqueles olhos e pele tisnados estavam imunes. Depois pegou numa cabeça de alhos e nas palmas calejadas fez uma papa odorífera capaz de matar qualquer vampiro. Do canivete saíram modeladas ovais de batata. Deitou-lhe grosseiramente partidos uns bons tomates vermelhos e envernizou tudo com uma golfada farta de azeite que não tinha marca.
-Patrão, vá-se chegando que a caldeirada tá a ser feita! - mas eu não me cheguei para lado algum que os aromas que provinham daquele tacho amolgado de apenas uma asa tão deficiente como o mestre que o enchía, eram um deslumbre para os sentidos.
Estava eu nestes devaneios do palato quando um ladrar furioso me acordou para a realidade: entrou uma figura amarrecada, escura pelo contra-luz da porta escancarada, acompanhada de um cão gordo e baixo, de pêlo hirsuto semelhante a uma alcatifa coçada pelo tempo: - Eh! Chico! Que nã havía maneira home! Tavas à espera que o pêxe te saltasse pra cima?! - e o Chico ladeado pelo cão Serafim que não se calava, depositou à beira do tacho um alguidar amarelento repleto de peixe viscoso.
O homem da perna de pau deitou dois dedos grossos a um pedaço de pata roxa, depois um naco de safio, uma fiada de raia, duas postas abertas de tamboril, uns figados de pescada e um e outro peixe indecifrável pelo seu aspecto tenebroso.
Serafim ladrou mais uma vez, rouco já; o cozinheiro de serviço alçou o toco de pau ameçando o canídeo. Temi pelo pior ao ver o canivete descrever figuras dignas de um florete em riste, mas o Serafim apesar de obeso tinha nas suas lides a do verdadeiro "toreador" e na perfeição de uma Verónica trocou as voltas e arremessou-se à perna verdadeira, arranco-me uma gargalhada que de imediato abafei não fosse o mestre-cuca tentar envenenar-me.
Voltou a regar tudo de largo azeite e no final, exclamando: -Agora, o principal! A capela! e afiou os olhinhos seráficos para o seu segredo, fazendo-me crescer água na boca e no espirito.
Que diabo era a capela?
Ao fim de pouco mais de meia hora, veio o tacho desasado para a mesa corrida, à laia de pega uma rodilha sebenta que levantado o testo chamou os outros desencostando-os do balcão. Sem toalha, nem guardanapo, nem faca, apresentaram-me à caldeirada num prato lascado de sopa.
Serafim agora emitia pequenos latidos e mordiscava como um palito a prótese carunchosa do nosso cozinheiro.
Todos comíam com gosto entre a fumarada dos pratos e o aluminio do tacho, desenvolvendo uma linguagem codificada que não entendía.
Entre as garfadas aparadas nos dentes gastos do meu garfo, desenterrei naquela molhanga saborosa um molhe verde e perfumado que o Chico apontou com o seu prato e me referiu entre os dois dentes que lhe restavam, "Oh! Patrão dê cá a capela!".
Fiquei assim deslumbrado com tanto sabor, tanto saber.
Consolado e esquecido das chapadas de sol, só me recordo de pousar a cabeça entre os braços e adormecer por cima da mesa engordurada, embalado por um assobio e uma luz encantada de final de tarde, linda, captada apenas pelas coisas simples da vida.




(Novembro/2005)