O nevoeiro

.

.





.

O primeiro a dar com ele foi o bode cobridor do Maneiras. Ou melhor: foi o cão do Maneiras, que ciente da sua função correu atrás do bode quando este, tresmalhado, se desviou para os lados de uma das inúmeras fendas que se rasgavam no Caminho Branco.
O Maneiras silvou de fininho e chamou ao cão o seu regresso mas, este próximo do bode latía e ganía, ora abanando o rabo ora agachando-se de focinho espetado à fenda bordejada de verde-escuro. Maneiras voltou a assobiar e praquejando ao "raça do cão" pôs-se à escuta dos sons da terra, que esta era sua conhecida, habituado que estava a tê-la como única companheira pela maior parte do tempo.
Mas nem do guardador nem do bode de estimação recebía imagem de volta ou som de retorno. Pela terceira vez apertou os lábios afunilados e saíu-lhe um apito longo e agudo, para logo a seguir gritar "Eh, eh, eia!". Sentiu o arfar do cão a aproximar-se que ver, não vía mesmo nada. O nevoeiro tinha aparecido denso, colado e branco como o Caminho havíam quatro dias, e se bem que naquelas terras fosse usual ele cobrir montes e escarpas, desta vez tinha chegado e não se levantou mais.
"Eh danado!", exclamou pegando no pêlo espesso do cachaço do cão, para logo este se escapulir para dentro do nevoeiro.
Maneiras, contrariado, deu passadas largas sentindo o cheiro do animal como um rasto a seguir. Sabía onde pôr os pés, evitar as manchas verde-escuro que aqui e ali riscavam a terra sempre húmida, pois conhecía os trilhos desde a infância e os anos havíam-lhe desenhado um mapa na memória, que até na escuridão lhe acendíam imagens.
Já ouvía com nitidez o balir triste do bode, repetitivo, como um sino da desgraça. Acercou-se de mão esquerda esticada à frente, a vara espicaçando a terra mole e resvaliça, e deu com o cão de vigia ao bode e à fenda escancarada.
Chegou-se perto do abismo, as biqueiras para lá do apoio da beira. Não viu nada, só verde, muito escuro quase negro. Vergou-se um pouco e afiou os olhos e foi então que descobriu, dobrado e entalado onde a terra aberta se voltava a unir, bem lá no fundo, um homem de pés e rabo voltados ao céu.
Deu um passo atrás, sentindo de novo a segurança do terreno.
Enxotou os animais e assobiou à recolha das cabras, num som curto, curto, longo e terminado em curto.
Voltou a espreitar. Acocorou-se e olhou à volta à procura de um socalco, um apoio que fosse, uma rocha que servisse de degrau até ao fundo onde aquele "desgraçado" - murmurou - espetado e ensanguentado, dormía para todo o sempre.
Mas nem pensar em descer ou iría fazer companhia ao morto.
Ergueu-se e notou que o nevoeiro se adensava, molhava até.
Fez o trajecto até casa, fechou as cabras e fez-se ao caminho da vila, o cão de seu lado.
Quando entrou na taberna todos se voltaram e o Zé Navalhadas, proprietário do estabelecimento parou de lustrar o balcão e levou as mãos à cinta, exclamando que o Maneiras devia "estar enganado, que hoje não é Sábado!" e rindo, acrescentou "o nevoeiro deu-te a volta ao miolo!". Fez-se um coro de gargalhadas que o Maneiras ignorou. Chegou-se perto do taberneiro e contou-lhe baixo a sua descoberta. O outro deixou caír o trapo que dava serventía a tudo e num êxtase macabro reproduziu o relato para todos ouvirem.
Falavam ao mesmo tempo, perguntavam insistentemente ao Maneiras quem era o homem, porque razão estaría ali e um, de imediato, atribuiu ao nevoeiro que tirava as vistas a todos, a cegueira do caminho. Silenciaram-se. Ficaram a matutar, olhando pelas portadas da taberna o branco pastoso que parecía uma cortina opaca a vendar a entrada.
Bartolomeu, que havía vários dias não saía ao mar, que também os Mosteiros estavam embrulhados naquele manto, disse em voz baixa que tinham que ir à GNR.
Todos concordaram e nova exaltação para constituír um grupo que se apresentasse com o sucedido às autoridades. Medeiros foi escolhido, pois tinha boas falas e de todos, era o único que não tinha nem tivera na familia pendências com a farda. Juntaram-se-lhe Maneiras e o Zé Navalhadas que deu o expediente daquele dia por fechado.
Abalaram-se os três, devagar que não se víam ruelas nem esquinas, nem céu nem novelões.



No posto foram recebidos com desconfiança mas assim que o Medeiros contou o achado, o Sargento de serviço chamou o Tenente e com dois praças fizeram-se ao Caminho Branco, levando na cauda uma comitiva ruidosa de quase toda a vila, que a palavra do morto já tinha passado.O Maneiras guiou-os: atrás de si um cordão de mãos para que nenhum se perdesse no nevoeiro ou caísse nas gargantas rasgadas.
Faltava o ar, o espesso da névoa entrava nos pulmões e depois de terem chegado, um silêncio de temor pelo que não se vía caíu tão pesado, que chegaram uns quantos a pensar que não voltaríam à vila.
Os homens mais corpulentos ataram cordas à volta do tronco, no seguimento enroladas a braços habituados a trabalho manual e neste guindaste improvisado fizeram descer os dois soldados, trémulos e a baterem com as botas e os joelhos nas paredes daquelas rachas verde-escuro.
Voltaram o morto de barriga para cima mas um dos soldados não evitou o grito quando olhou o rosto desfigurado e azul, os membros partidos ao dependuro.
O Tenente cá em cima gritou "Puxem! Puxem!" e desordenadamente, deram força de içar aos esticões, os praças a baterem desconsoladamente nas lâminas da rocha e de encontro ao morto que lhes sujava a farda naquela subida pela vida, temendo que a terra abrupta se fechasse e os engolisse para todo o sempre.
Navalhadas curioso, debruçou-se junto ao corpo e muito perto da cara mutilada, benzeu-se e informou que "era o filho do Fadigas!", tinha a certeza pois vira-lhe o dente de ouro bem na frente da boca aberta. Bartolomeu persignou-se e disse que alguém tinha que ir avisar o pai, que isto era mesmo uma "desgraça! Pois o moço até estava para abalar para a América". Todos baixaram a cabeça num colectivo pesar e de imediato endereçaram-lhe uma oração de encaminhamento da alma.
O silêncio foi interrompido pelo cão do Maneiras que desatou a ladrar e nem sequer à ordem do dono este se calou. Olharam em volta mas só o nevoeiro os envolvía. O ladrar continuou, o cão abanava a cauda de um contentamento sem explicação e Medeiros virou-se ao Maneiras, culpabilizando-o por aquele sacrilégio, que pressionado ameaçou o canídeo de uma "malha". O cão esgueirou-se desaparecendo no branco do neveoiro e de imediato se quedaram os latidos.
O Tenente deu ordem de regresso e todos em fila voltaram a dar as mãos com o Maneiras a liderar.
Não havía muito a saber, concluiu no dia seguinte o Tenente: o inquérito estava fechado por sí só, já que a "queda da vitima se devía a condições climatéricas adversas que neutralizavam qualquer visão um palmo adiante". O Fadigas pai só quería fazer o funeral ao filho e seguir com a vida, que a promessa de melhores condições quando o falecido chegasse à América, estavam tão enterradas como ele, por conta das dívidas que já tinha contraído por causa do barco novo e os Mosteiros continuavam tão nevoentos como o Caminho Branco ou até mesmo o Nordeste. Por outro lado, o Tenente limitava-se a fazer o mínimo indispensável para que a sua folha de serviços saísse sem mancha: já lhe bastava o castigo do degredo naquela ilha, por um negócio mal orientado de saias com a mulher do seu anterior Capitão que tudo fizera e conseguira para o afastar do continente.
Durante algumas semanas ainda se comentou a tragédia da família do Fadigas e o horror de quem estivera no local junto à fenda verde-escuro.
Mas o nevoeiro, teimoso, branco e cego lá continuava. E a vida, também.



Maneiras tinha levado um bocado de pão lêvedo e flor de torresmo para o petisco da tarde. Para adoçar o picante nada melhor que um maracujá.
Comía de pé e repartía pedacinhos com o cão, obediente sentado de frente, babando nos cantos do focinho.
Quando o Maneiras lhe ofereceu a lambidela das cascas dos maracujás, as orelhas do cão espetaram-se, rodaram para trás, voltaram a entesar-se e recusou a guloseima, virando costas ao seu protector, desatando a rosnar, a ladrar e a abanar a cauda.
Maneiras deu-lhe com a vara, admoestando-o mas reconheceu naqueles sons o latir da tarde em que tinham tirado o filho do Fadigas do rasgão assassino. Também ele apurou o ouvido, tentou afiar a vista mas o nevoeiro implacável embaciava qualquer nitidez.
O cão ganiu e partiu em correria. Ainda o ouviu não muito longe, um ladrar de contente e depois mais nada.
Maneiras atirou as cascas dos frutos para longe e guardou a lâmina da navalhinha.
Começou a andar rápido, depois mais acelerado ainda, as narinas abertas a farejar o cheiro do cão, os pés a alçarem-se onde não havía chão e de repente, o cão apareceu-lhe às canelas, todo ufano, a cauda agitada no reencontro, a pôr-se nas patas traseiras para logo dar sinal de que quería que o seguisse. "Quem está aí?", gritou prosseguindo na marcha, a vara espetada adiante na eminência de se deparar com um estranho. Estacou, pendeu a cabeça à direita para que o lado que ouvía melhor apanhasse claro o que lhe parecía ter sido um som de passos a afastar-se... ficou uns segundos assim, chegou até a fechar os olhos... e um clarão acendeu-lhe na cabeça a imagem do filho do Fadigas a caír na fenda.
Correu para o sítio e espreitou para o corte da terra aberta em duas: lá estava um homem de borco, embrulhado no verde-escuro.
Pareceu-lhe que se mexía, chamou, assobiou como fazía às cabras, agarrou num seixo e fez pontaria às costas do homem. Nem um movimento, um som, um respirar que fosse subía das profundezas até às beiradas de rocha.
Maneiras inquieto, começou a andar em circulos, resvalando junto ao rasgão, o nevoeiro a deslizar, baço, como lençóis molhados.
E de vara erguida como uma lança, correu Caminho Branco abaixo, esquecendo as cabras, só o cão a par naquela descida desenfreada.
Entrou no posto da GNR encharcado e numa voz de trovão pediu que "fossem! Mas fossem já! Que já caiu outro à racha!". O Sargento chamou dois homens para o acompanhar e seguiram o trajecto inverso, sem se dar ao incómodo de acordar o Tenente, que aquela era a hora em que fazía a sesta.
Deram as mãos ao Maneiras e os quatro sem se libertar daquele elo espreitaram para a cova rochosa, apreensivos, receosos que a fenda os sugasse para o seu estômago.
O Sargento amarrou-se com o Maneiras e de pés bem fincados repetiram as manobras de descer os dois soldados e à vez içaram primeiro o desconhecido e depois os praças.
O que fizeram subir era mais um corpo deformado e esboroado como o do filho do Fadigas: a barriga, um pouco proeminente, tinha estourado com o impacto e era coisa muito feia de se ver e cheirar. Ainda estava rosado, era um "morto fresco", sublinhou o Sargento olhando o Maneiras. E depois silenciou-se. E disparou que o "caso está a ficar mau para o teu lado, ó Maneiras!". Mas o Maneiras agarrou-lhe as bandas da farda e agitou-o, sem emitir um som que fosse; depois libertou-o mansamente e preparado para o contra-ataque tirou a navalhinha do bolso e fez saltar a lâmina junto ao pescoço do Sargento. Este engoliu em seco e num soluço disse que era o "nevoeiro".
O Maneiras desapareceu entre o branco, seguido pelo cão, e deixou-os entregues às apalpadelas de encontrar o bom trilho de volta, carregando o morto às costas.
Dois dias depois, um Sábado, entrou na taberna do Zé Navalhadas e soube que o defunto era o rapaz mais novo do leiteiro: tinham descoberto por causa do calo que tinha na mão esquerda, das rédeas de guiar o cavalo ajoujado das bilhas de aço a pingar leite. Que "era uma pena!", que até estava já com a passagem comprada e "tudo", tanto "tempo a amealhar para comprar o bilhete de avião para ir ter com a irmã à América", que esta tinha partido e casado por lá e tinha uma "vida muito boa!".
Maneiras limpou a boca às costas da mão e o cão veio lamber-lhe os pingos de aguardente. Pagou e saíu sem conversa.
No dia seguinte e como todos os dias levou as cabras ao Caminho Branco.
Nesse dia como desde há vinte, o nevoeiro empastava tudo.
Estava sereno e alerta, observava atentamente o cão, de quando em vez um afago abrutalhado nos lombos, uma sacudidela nas orelhas.
Pareceu-lhe ver um vulto, uma mancha a passar... o cão imóvel espetava a cauda na horizontal, o beiço levantado a rosnar, depois um latido curto, a corrida, Maneiras a segui-lo.
E de repente, a andar de braços esticados o olhar fito no chão, a figura de Saul, o filho varão de Bartolomeu.
Maneiras atirou-se às pernas do rapaz deitando-o ao chão e tapando-lhe a boca com a mão olhou-o tão profundamente que o silenciou. Depois sussurrou-lhe junto ao ouvido que "por nada de nada te levantes daqui". Ergueu-se e fez-se de peito ao nevoeiro em direcção à racha que tinha servido de cova aos outros dois.
Encontrou-a onde esperava.
Joaquina parecía que o aguardava, as mãos cruzadas frente à saia gasta, o rosto e o cabelo molhados de tanto andar às voltas com o nevoeiro.
Ficaram a mirar-se.
O Maneiras tirou a navalhinha e ela começou a falar:
- Sabes Maneiras...estão todos a ir embora. Os que prestam. Os que ainda restam solteiros para a minha Juliana. Acham que ela não é boa rapariga para eles. Só as da América é que servem! Se tu tivesses filhos percebías do que estou a falar...". Depois baixou os olhos para a racha bordejada a verde-escuro.
- Como é que vai ser agora?! Ela está de bucho cheio e nem sequer sabe quem foi...só me falta o Saul Bartolomeu! Deixa-me acabar com esta vergonha, Maneiras! Andaram todas a farejá-la e depois ala! Que vou para a América!.
Maneiras guardou a navalhinha e fez-lhe um gesto de cabeça.
Joaquina olhou-o e saltou para dentro da racha.
Ele ouviu os ossos a baterem nas paredes pontiagudas e depois um som igual ao de uma melancia estourada quando não a seguramos nos braços.
Deu meia volta e desapareceu no nevoeiro.
Passou rente a Saul Bartolomeu que continuava deitado de cara afocinhada no Caminho Branco.
Acertou-lhe um pontapé no traseiro e esfumou-se entre assobios curto, curto, longo e terminado em curto.


(Outubro/2006)

Porto-1947

.

.



.
Os óculos de marca vendavam uns olhos inchados e vermelhos de tantas lágrimas vertidas pela noite fora.
Ardiam aqueles olhos claros ao quente do sol brejeiramente, provocadoramente num dia de luto.O negro do traje ressaltava do branco do mármore dos epitáfios semeados em linha, pontilhados aqui e ali pelo garrido das flores naturais que alternavam com outras, indestrutíveis de plástico.Ouvia-se o murmurio do elogio do morto, acrescentado por um ou outro pormenor picante da sua vida que havía sido plena mas pouco longa; faziam-se cálculos ao dinheiro e às dívidas, ao património e à única herdeira, a viúva.
O cortejo parou onde a cova se abismava para receber no seu leito fofo e remexido de fresco, o caixão intermédio escolhido dos três preços possíveis. Até nisso a viúva era condenada. E também no tailleur francês, demasiado cocktail para aquela cerimónia. E ainda por não ter soluçado uma só vez ou ter ameaçado o fanico.Não houve despedidas de última hora com o esquife aberto, a flor lançada à tampa do caixão, a oração de encaminhamento da alma para o paraíso.Fez-se o que havía de obrigação e fechou-se o dia, guardando a chave na memória.Levaram a viúva a casa, impondo-se a presença de amigos que se fazíam de intimos: ela repudiou a ideia e como se isso não bastasse, disse não, e bateu a porta barricando-se no cheiro ainda palpável do morto.

Desataviou-se da negrura e mergulhou na banheira, os olhos fechados, a boca apertada, o oxigénio sem entrar.Mas o instinto e o liquido a penetrar nas narinas fizeram-na levantar como uma mola, a água balanceando e transpondo os bordos alagando o azulejo do chão, a gota que faltava para o dique do coração rebentar.Chorou, gemeu, o queixo tremendo do frio da saudade, da antevisão de noites em que a cama ficaría maior, o vazio, o silêncio da gargalhada, a falta da mão na mão.Ficou nua, acocorada num tempo sem medida, entregue ao abraço que dava a si própria. Chegou mesmo a adormecer e gelada ao acordar, levantou-se, vestiu o roupão que fora do morto e acomodou-se na poltrona de orelhas que tinha a cova do peso dele marcada no estofado.

Passeou os olhos pela sala onde todas as noites fazíam companhia um ao outro.Deteve-se pela mesa de café onde uma caixa de madeira com embutidos de latão guardava uma das paixões dele: abriu-a e acendeu um "puro". Ficou a olhar os rolos de fumo a subirem, perfumando o ambiente e trazendo a imagem do morto a dar chupões na ponta do charuto, o fósforo comprido a soltar pequenas faúlhas pela sucção; e depois o ar prazenteiro, o fechar de olhos acariciando aquela sensação das coisas boas da vida, a que o morto só se entregava em momentos especiais, quase de festejo.A viúva mirou o "habano" com um sorriso triste, falando como se continuasse acompanhada. E até conseguía ouvir as respostas dele; e depois retorquia, defendendo a sua opinião, uma pequena gargalhada ao escutar uma graçola.
Largou o charuto e voltou a chorar.
Doía-lhe o corpo, a pele, o roupão dele que a cobria.

De repente ouviu-o sussurar em "ocasiões especiais" e soube imediatamente do que o morto lhe falava.Da garrafeira, lá bem no fundo, puxou uma garrafa escura, sem elegância nem rótulo trabalhado. Tinha pintada a letras brancas numa tinta grumosa a palavra "Porto-1947".Conhecía desde sempre lá em casa. Tinha sido oferecida pelo pai dele e cada vez que ela referia o tesouro esquecido ele sempre adiava tocar naquela preciosidade, argumentando que estava guardada para uma ocasião especial.Mas nunca tinha havido nenhuma.Primeiro porque eram demasiado jovens, depois porque ele quería manter a tradição e fazer justiça ao seu pai tornando-se o guardião, a seguir esperaram pelos filhos que não tiveram, depois abriríam a garrafa quando celebrassem as bodas de prata. E de ano em ano, com a vida a prazo, o "Porto-1947" conseguira resistir aos ataques da tentação, da lembrança, da comemoração.

A viúva não hesitou: cortou o lacre com uma exactidão de relojoeiro à volta do gargalo, sentindo na sua a mão do morto, preciso e firme. Feriu a cortiça da rolha com a espiral fria do aço do saca-rolhas e depois, com mil cuidados, evitando a agitação e o movimento brusco, puxou devagar e suavemente o pequeno cilindro para fora, extraíndo uma aroma de framboesas e mirtilos macerados. Limpou com uma carícia o gargalo e decantou o néctar para um frasco de cristal.Observou extasiada o pé borrento e de cor ferrugenta que se depositou na gaze que filtrava o liquido: aproximou o nariz e aspirou fortemente, inebriando-se com o halo antigo e depurado.
Serviu um cálice generosamente.
Depois um outro, pousando-o frente ao assento do morto.Levou o seu copo aos lábios e sentiu o alcool leve adormecer-lhe o beiço, como se tivesse passado um baton.Tomou então um gole farto e ergueu o "Porto-1947" ao alto, num brinde mudo.
Aí sentiu que largara o luto.

.

(Janeiro/2006)

A fotografia

.
.
.

.
Baez tinha uma fisionomia peculiar: baixo, entroncado, ruivo e um nariz adunco que podería iludir uma ancestralidade judaica.
No entanto, o que ele fazía ressaltar era o seu nome castelhano, que tinha não recebido na linha directa de parentesco mas que havía adoptado de uma tia afastada e banida da familia que tinha feito furor na Guerra Civil de Espanha a matar desejos da carne, daqueles que passavam a fronteira para Portugal encobertos pela noite sem lua.
Baez era um celibatário não por convicção mas fundamentalmente por teimosia e também porque no seu caminho não se tinha atravessado - ainda - a sua "cara-metade" como costumava justificar em tom de brincadeira. Brincadeira aliás, que parecía ser o seu modo de vida, pois o sorriso que permanentemente mostrava faría deduzir ao menos atento que era feliz.
Acompanhava-se sempre, de uma mala que protegia a sua grande paixão: uma máquina fotográfica.
E por tudo e por nada, sacava da sua arma e disparava: era uma janela entreaberta que o motivava ou um rosto enrugado que lhe lembrava um pedaço de terra seca. Mas o mote principal da fotografia eram mesmo as mulheres. Tinha-as em álbuns onde carinhosamente as apelidava de estações, com o mês adequado à cor do cabelo ou ao seu temperamento, com uma pequena frase que as distinguía e separava, como caracteristicas que lhes estivessem inerentes. Uma loura de olhos azuis era sempre Inverno, talvez um "Janeiro sobressaltado por um granizo que podería refrescar a minha bebida favorita" ou uma morena de boca grossa, "aproxima-se o tempo das castanhas, um lume brando no meu coração" referente a um final de Setembro.
Amava-as a todas. Mas só no álbum fotográfico. Na verdade quando fixava os seus modelos no rolo, dava-lhes atenção mas não as amava; deixava esse sentimento subir-lhe ao peito só quando se encontrava na intimidade da casa de banho, transformada em laboratório fotográfico.
Justificava essa maneira de ser como herança da tal tia espanhola que a todos quería e a nenhum se prendía, e conforme os contornos se começavam a delimitar em manchas primeiro, depois partes do rosto e por último no todo sob os liquidos da revelação, assim se sentía amarrado àquelas expressões femininas impressas a preto e branco, num crescendo de emoção até às lágrimas que deslizavam entre o nariz adunco. Penduradas, as faces de papel ligeiramente abaulado eram revistas à lupa, num carinho atribuído a cada uma como se unica fosse no mundo.
Num dia de finais de Outubro, Baez arrastava-se avenida abaixo, estojo fotográfico à tiracolo atrapalhando o movimento das pernas.
Caminhava sem destino, num passo ritmado para aquecer e alhear-se do ruído do trânsito. Passou por uma paragem de autocarro onde viu uma mulher de cabelo ao vento. O instinto beliscou-o e sem deixar de andar deitou a mão ao fecho da mala e tacteando puxou a câmara para fora, pendurou-a ao pescoço, destapou a rodela da objectiva, olhou ao alto e avaliou a luz que se projectava no local onde a mulher de cabelo ao vento se encontrava encolhida, quase estática perante o frio que se sentía; só o cabelo parecía ter vida independente, ondulando como uma bandeira incendiada ao sabor da ventania. Sim, que aquela cabeleira era de uma ruiva.Levou a máquina em direcção ao olho esquerdo piscando o direito, o nariz adunco amachucado contra o metal negro, a mão ávida na objectiva procurando captar vida dentro de um quadradinho, aprisionando-o para sempre.
E no momento em que calcou no botão do disparo, ao contrário do habitual, sentiu ele um disparo no peito: a ruiva deitava-lhe a lingua de fora num esgar, o polegar encostado ao nariz em tom jocoso de corneta.
Ficou completamente desconsertado e o coração acelerou de tal forma que a unica coisa que fazía sentido para si era fugir, correr o mais rápido possivel dali.
Foi o que tentou fazer sem olhar para trás, mas o peso da mala e da máquina e ainda a sua estatura atarracada não lhe davam a elegância que precisava naquele momento e atrapalhado, acabou por se estatelar no chão. Levantou-se como uma mola, apanhou um táxi e só se sentiu salvo e com um joelho esfolado no buraco das calças quando entrou em casa.
Revelou o rolo desse dia: o rio picado de branco pela ventania, uma margem orlada por nuvens negras e um raio de sol que as atravessava, um velho pedinte que tocava violino e ela.Ela a preto e branco continuava a incendiar a pelicula.
Baez constatou que lhe havía passado despercebido que tanto ela como ele eram ruivos...e achou curioso, pela primeira vez, que uma natureza idêntica à sua o marcasse tanto...deu consigo a pensar se a sua tia tería sido ruiva, pois no resto da familia que conhecía ninguém tinha os cabelos enferrujados como os seus.
Deitou-se, dorido da queda e perdido em pensamentos vários que o deixavam apreensivo sem descobrir porquê.
Adormeceu envolto numa convulsão de pesadelos com a tia de longa cabeleira ruiva que o envolvía e sufocava. De sobressalto, despertou suado e febril, o joelho babando uma aguadilha ensaguentada que se tinha colado às calças do pijama e mancando arrastou-se até à casa de banho. Mas mal entrou, lá estava a foto dela, pendurada por molas, a lingua de fora desafiando-o e os dedos a imitarem uma corneta. Achou que era demais e decidido arrancou o rectangulo de papel determinado a rasgá-lo: olhou ainda uma ultima vez a cabeleira ondulando e foi aí que qualquer coisa lhe despertou uma vista mais atenta; aproximou a fotografia dos olhos, e de lado, e depois afastando, e de novo junto ao rosto apercebeu-se que algo por entre o cabelo da ruiva tomava forma. Muniu-se de uma lupa e examinou atentamente. Não havía duvida: entre uma brecha do cabelo ruivo esvoaçado, havía um outro rosto. Lá estava, agora com toda a nitidez, um par de olhos, um nariz, uma boca em forma de coração tão pequenino que parecía um beijo dado.Focou apenas aquela face e disparou por várias vezes até aumentá-lo, sucedendo-se nas manobras de revelação e secagem.
Por fim, o joelho inchado e a dor obrigou-o a parar e exausto sentou-se na tampa da sanita, a admirar o que agora era uma cara por quem se sentía totalmente enamorado.
A ruiva estava completamente esquecida.
Só interessava aquela face, dois olhos negros e amendoados, enormes a devorarem quem os fitasse, e um nariz levemente arqueado.
Baez levou a mão ao peito a segurar o coração dentro de si, receoso que da força com que batía desordenado lhe saltasse.
Coxeou agarrado à mobilia e aos encontrões pela casa escura da noite, abriu uma gaveta, tirou um álbum e desfolhou com o indicador humido de saliva à procura de um retrato envelhecido.
Arrancou-o sem cuidado e voltou à casa de banho.
Lado a lado comparou as figuras de uma e outra foto e não teve mais dúvidas: uma e outra eram a mesma pessoa, apenas com uma diferença de setenta anos.Ali estava a tia Baez, renovada do sec. XXI, ainda estrela das artes da paixão.
Colou as fotos, uma junto à outra, uma dedicatória unica abrangendo os dois pedaços de papel, "Sempre te aguardo, hoje e daqui a cem anos".Fechou o álbum, passando a palma da mão numa carícia prolongada e sorriu, agora feliz por ter encontrado a sua cara-metade.
.

(Fevereiro/2006)

A praga

.




.

Teresa de Jesus passou as costas da mão esquerda pela testa limpando o suor, afastando os pensamentos sobre a filha única em idade casadoira, que quando ela se fosse, menos um par de braços para tratar da terra e dos animais, que isto é vida custosa e só à força do muito querer lá vai.
Para onde, Teresa de Jesus não sabe. Talvez nunca o tenha sabido, que de quando em vez sobe-lhe um fel e apertando muito a boca o consegue suster e engolir de novo para não bolsar um berro medonho que até a ela mete medo.
Levanta ao alto o sacho e vá de o cravar com força no torrão da terra que esta tem de ficar preparada ainda hoje.
E repete os movimentos de erguer e baixar a sachola, lutando contra as pedras que se lhe atravessam aos carreiros que faz, certos, verticais, medidos na sua memória pelo acto visto de seus pais e avós e estes dos outros que se lhes antecederam.
Estas são terras suas. Sem senhor ou favor, perdão ou condescendência, foram-lhe dadas pelo sangue e de tanto laborar já nelas encontra a sua carne.
Escorregou-lhe o lenço negro sobre os olhos: entala o cabo do sacho entre as pernas e tira a negrura que lhe cobre a cabeça vai para mais de dez anos quando o seu homem se finou; afaga o cabelo cinzento sufocado num aperto de carrapito entrançado e volta a poisar o lenço sobre a cabeça, cuidando para que se não veja réstia de cabelo. O rosto magro e tisnado franziu-se perante o sol impiedoso e de olhos fechados agarrou-se ao sacho e bateu na terra, corcunda e de passinhos pequenos, avançando lenta e obstinada na tarefa.
Terminou, por agora. Há ainda a forragem para levar à vaca que ainda sobra e o feijão para cozer para a janta.
De relance contou os carreiros abertos como linhas da vida, deitou a sachola ao ombro e num passo rápido afastou-se, as pernas magras e compridas conhecendo de cor e salteado o relevo do terreno, algum musgo em lugar sombrio, uma teia de aranha peluda amarela e negra, a fonte, o caminho íngreme até casa que a sua é a ultima da aldeia, lá mesmo num fundo e num alto.
Puxa o cordel de fora da porta e entra para o fresco escuro da casa. Agora que o sol não tarda em baixar é tempo de abrir as janelas e devolver a vida à casa vazia.
Troca as botas grossas pelos tamancos de pau, o pé rapilhando casa fora, vibra o louceiro, não há tempo para descanso: atira a lenha e uns gravetos, ateia-os com um bocado de papel que vinha a embrulhar umas sardinhas de salga, o atiçador espevita na lareira a pressa da sua sopa.
O cordel de fora puxa o fecho e Cremilde de Jesus entra pedindo a "bença, nha mãe".
Teresa acocorada com a panela escura de volta do lume não lhe responde, mexendo o toucinho para que haja pingo para o caldo.
Cremilde troca as botas e calça as taroicas, olha à sua volta e pergunta pelas maçãs.
- Quê? - atira-lhe Teresa.
- Nha mãe, as maçãs?! Vou apanhar um avental delas pra nós!
- Não tragas mais de quatro, rapariga! Olha que quero as boas para a venda de quinta no mercado!
- Sim, nha mãe!
-E toma tento, rapariga! Não te quero de conversa com o demo!
- Oh, nha mãe! Quando é que vai parar com isso?! É até pecado falar assim do vizinho!
Teresa de Jesus não disse mais nada. Manteve-se naquela posição dobrada, os joelhos roçando o queixo, o lenço negro a pender sobre o sobrolho.
- Como queira, nha mãe, já vou e já venho, então! - e bateu a porta, os tamancos pelo sobrado num passo rápido e vivo.
Cá fora as moscas zumbíam com o entardecer, a luz filtrada num amarelo rosado, a calidez do ar acariciando as faces escaldadas do dia.
Cremilde de Jesus galgou as terras acima da casa, apoiando as palmas das mãos nos joelhos conquistando o terreno à força de resvalar nos taroicos, boca aberta ao ar fresco do alto.
Olhou a macieira e cresceu-lhe uma água na boca: viu distintamente o riscado vermelho da fruta pendente na árvore, grande, gingada à esquerda sobre o muro de pedras amontoadas que dividia a terra de sua mãe da do vizinho João das Vacas.
Debaixo da árvore mirou aquelas bolas coloridas e sumarentas e lá no topo, as mais bonitas e brilhantes fizeram-na sorrir: ágil, pendurou-se numa ramada e dando balanço a uma perna atirou-se enroscando-se como uma cobra nos ramos de cima e depois, no outro, e de seguida as mãos fecharam-se para se agarrar às folhagens que soçobravam à esquerda, já do outro lado do muro de pedras. Abanando como um equilibrista tentou por-se de pé, mas um tamanco fugiu-lhe e foi caír no terreno alheio.
Mordeu o beiço já a pensar na recomendação da mãe e no receio de alguém aparecer e contar ao vizinho ou, quem sabe? o próprio João das Vacas surgir do nada.
Ficou ali, suspensa no acto e nos braços ao alto, um pé calçado outro nu a pensar o que fazer. Mas já que ali estava e se tinha dado ao trabalho da escalada mais valia que arrancasse as maçãs cobiçadas: a primeira entalou-a entre os dentes e sentiu um fio do suco a escapar-se pela comissura dos lábios, as outras quatro enfiou-as no bolso do avental florido.
Agachar-se foi tarefa tão dificil como tinha sido erguer-se e quando sentiu as coxas assentes na pernada que a sustinha largou de uma vez as ramadas das mãos ouvindo-se um silvo rasgando o ar e de seguida levou no cachaço com os ramos libertos. Perdeu o equilibrio, como se alguém a tivesse empurrado pelas costas e sentiu-se atirada para a frente, cuspindo a maçã que lhe entupia a boca. O instinto levou-lhe as mãos calejadas a agarrarem-se seguras a outro ramo e abanando, lá lhe caíu o outro tamanco, agora em terra sua. O saiote, a saia e o avental bojudo das maçãs armavam-se num balão, inchados pelo balanço do corpo, os pés nus a irem e virem,o lenço estava preso no carrapito e nas folhas. Sentía o pescoço a escaldar pela chicotada da árvore invadida e um bocado da casca riscada da maçã entalava-lhe a respiração ofegante do susto e da queda eminente. Começou a sentir as covas dos braços a esticarem e os braços a arderem da fricção nos ramos acima de si.
Abanou a cabeça, cuspiu a casca e pedindo ajuda ao "Senhor dos céus" atirou-se.
Caíu de nádegas e as maçãs saltaram-lhe do bolso do avental. Agradeceu ao seu protector com os olhos postos ao alto, benzeu-se numa pressa, apanhou a taroica de pau e num ápice galgou o muro divisório de pedra agarrando o par caído em terreno inimigo e na mesma correria fez o caminho inverso, agachando-se para apanhar apenas duas maçãs.
Largou-se caminho abaixo até casa, os chinelos de madeira presos numa mão, na outra os frutos proibidos, o cabelo escapando do carrapito desfeito e uma aflição tremenda a tomar-lhe o peito sobre as explicações que tería que prestar a sua mãe.
Puxou o cordel e escancarou a porta. Calçou os tamancos e soltou um suspiro de alívio, que sua mãe tinha ido levar a forragem à vaca.


Deitou água na bacia e passou as mãos molhadas pela cara e pelo cabelo. Foi então que notou que não tinha o lenço. Sentiu um rubor nas faces, levou novamente as mãos ao cabeça e tentou lembrar-se o que tería acontecido. O espelho na sua frente mostrava os braços vergastados dos pulsos até aos cotovelos. Virou-se tentando ver o pescoço e de onde lhe vinha tamanho ardor: assustou-se quando viu uma gola vermelha de sangue à flor da pele a rodear junto ao carrapito. Desmanchou o que restava do penteado e passou o pente à bruta, desfiando os nós de cabelo e restos de casca de macieira. De seguida entrançou com mãos ágeis e com os cabelos perdidos no pente fechou a trança grossa que lhe pendía até à cinta.
Teresa de Jesus entrou, os olhos afiados para a filha.
- Bença, nha mãe!
- Anda comer.
Cremilde dispôs dois pratos de sopa sobre a mesa de madeira, duas colheres, desembrulhou a broa do linho do pano e ficou de pé esperando que Teresa de Jesus terminasse de lavar o rosto, o pescoço, os braços e as mãos. Viu-a tirar o lenço negro e compor o rolo entrançado do carrapito. Lembrou-se do seu lenço desaparecido e o coração disparou-lhe.
- Que foi, rapariga? Que tens? - atirou-lhe Teresa inquisidora.
- Nada, nha mãe, nada...Tenho fome! Vamos comer, nha mãe!
Teresa de Jesus olhou-a de alto a baixo e esticou o braço a pedir os pratos. Serviu o caldo farto e sentou-se. Só depois, Cremilde de Jesus tomou o lugar à mesa, persignou-se e pegou na colher animada pelo cheiro da sopa. Levou a primeira colherada à boca, partiu um bocado de broa e migou-a para o caldo, afogando os pedaços entre o toucinho, as couves, o feijão e as batatas.
- Qu'é do teu lenço? - perguntou Teresa de Jesus sem levantar os olhos do prato fundo.
Cremilde de Jesus embuchou, a boca cheia da broa embebida, o medo da verdade, o pânico da mentira. O silêncio tombou sobre a mesa fazendo-lhe arder ainda mais o vergão no pescoço. Não foi capaz de emitir um som que fosse, um único movimento que evidenciasse que estava ali e viva.
Teresa de Jesus meteu a mão ao bolso do seu avental e tirou o lenço florido e com um rasgão.
Com uma pancada seca deitou-o sobre a mesa. Cremilde de Jesus assustou-se dando um pulo na cadeira mas conhecendo sua mãe, manteve-se muda à espera do castigo.
Teresa levantou-se, chegou um fósforo ao candeeiro de petróleo e pousou-o sobre a mesa. Depois, junto à lareira, agora morrinha, encheu um púcaro de esmalte de café batido e aromático. Sentou-se e amarrecada como se continuasse a abrir sulcos na terra, beberricou o café escaldante.
- Que te disse eu sobre o demo?! Não te avisei que não te quería daquele lado? Que queres tu?! Desgraçar-nos de vez? Não chega aquele maldito ter-nos levado as vacas?
Cremilde de Jesus ía abrir a boca para se justificar mas Teresa ainda não tinha terminado.
- Sabes onde apanhei o teu lenço? Nas terras do maldito! Se eu não estivesse por perto... E esse pescoço, e esses braços? Podias ter partido a espinha, rapariga! Queres tu dar-me mais aflições que as que já tenho?! Desde que o teu pai se foi, tu sabes como tem sido a nossa vida... - perdeu o fôlego para continuar a reprimenda.
Recordou-se dos braços fortes do seu homem a abrirem regos por onde passava fértil a água que molhava os campos. Fechou os punhos e os olhos ao rever-se a entregar à vez e à necessidade, as vacas ao João das Vacas. Naquele tempo, a filha pequena de cinco anos não tinha valia e ela sózinha não tinha braços suficientes para trabalhar todas as terras nem puxar os veios da água para os terrenos que agora estavam rasos de erva sem préstimo. Engoliu o orgulho e pediu ajuda ao João das Vacas que sempre tinha sido companheiro do seu homem.
- Perdão, minha mãe, perdão, perdão, perdão! - repetía Cremilde de Jesus de mãos postas e ajoelhada perto de Teresa.
- Vai-te deitar. E leva o teu lenço.
- Bença, nha mãe! - Cremilde ergueu-se, deitou a mão ao lenço rasgado e despareceu levando o candeeiro de petróleo consigo.
Teresa de Jesus ficou apenas alumiada pelas brasas incandescentes da lareira, voltou ao púcaro de café que encheu de novo e sentiu o fel subir-lhe pelas entranhas até ao grito, que mais uma vez apertou na boca.
Tinha nos braços e no peito aquele nojo das mãos do João das Vacas a tentar agarrá-la, apertá-la nos seios e na boca como paga do seu pedido. O ódio tomou-a toda, a forquilha de serviço à forragem da vacaria interpôs-se entre os dois e como ele se risse dela, Teresa de Jesus sentiu a força para avançar para ele e o espetar com os dentes afiados. Depois chamou-lhe maldito e sentiu-se bem quando viu que João das Vacas sangrava do bojo saído e gritava como um porco no dia em que lhe espetam a faca. Deu consigo a fugir, a correr pelo campo fora e a gritar maldito, o lenço escapou-se-lhe na fuga, o carrapito desenrolou-se e a trança negra até aos joelhos chicoteava-lhe as costas dando-lhe o ânimo para subir até casa.
Pegou no atiçador e espevitou o lume que largou umas faúlhas vermelhas e brilhantes.
Acocorou-se sentindo no rosto magro o calor das brasas e da raiva.
Na aldeia achavam-na louca por ter perdido o seu homem; era por isso que o tino se fora e tinha picado o João das Vacas; era por isso que tinha deixado de ir à missa e se tinha tornado bruxa; era por isso que era de poucas falas; era por isso que sua filha ainda não tinha arranjado namoro, que ninguém quer uma sogra que é bruxa e que pica os vizinhos.
Teresa de Jesus atira com a pinga de café que resta no púcaro de esmalte para o lume fazendo-o chiar.
.
.
O galo cantou, o dia prestes a nascer fez Teresa de Jesus levantar-se.
Outro dia, outra terra para abrir covas, forragem de novo para a vaca que restava entre as que tinha pago a João das Vacas para os buracos que lhe abrira na barriga e o tinham deixado sem trabalhar durante muito tempo. As maçãs para colher, que amanha será dia de mercado e algum dinheiro é preciso para comprar umas sardinhas de salga e, talvez, um lenço novo para a rapariga.
O som da água fria a caír na bacia acordou Cremilde de Jesus.
- Caminha que não tenho vagar de ficar aqui o dia inteiro! Acorda, rapariga! - e Teresa de Jesus esboroava no café muito adoçado uns bocados de broa, a tijela quase a verter.
Comeram de pé, embrulhou uma chouriça puxada do varal acima da lareira num pano de linho e juntou-lhe o resto da broa. Ajeitou o lenço negro e puxou o cordel batendo a porta.
Pelo caminho a passarada numa chilreante alegria, as duas mudas, Cremilde de Jesus mais atrás roendo azedas e apertando entre os beiços fitas de erva que emitem assobios estridentes, Teresa armada de duas sacholas ao ombro, o farnel a bater nas pernas dentro do bolso do avental.
Chegam às terras e começam a revolver, a puxar, a levantar ao alto a sachola e a ferir os torrões, par a par, corcundas e erectas, dobra e endireita num movimento ritmado, as duas de inicio, pouco depois, Cremilde de Jesus a ficar para trás, a distraír-se com coisa nenhuma, a cantar, a parar e a olhar o céu que agora o sol está alto.
O dia está quente.
Os riscos na terra ficaram para trás que esta está acabada, agora é partir para a macieira, sempre a subir. Na volta é que é bom, já perto de casa e a descer.
Teresa de Jesus quer comer agora, à sombra da sua macieira, as costas apoiadas no tronco forte da árvore, colher duas maçãs para matar a sede do sol e do salgado da chouriça. Apetece-lhe fechar os olhos e dormir e sonhar.
Cremilde de Jesus baloiça-se numa ramada, os pés ao dependuro para cá e para lá.
Uma pedra bate no tronco da macieira e Teresa de Jesus sobressaltada levanta-se e dá um puxão no pé da filha.
João das Vacas do outro lado do muro ri-se zombeiro.
Cremilde pôs-se ao reguardo das costas da mãe e começa a rezar uma ladaínha.
- Que queres, maldito? Vai-te demo! - cospe-lhe Teresa de Jesus.
- Hoje como as duas e de caminho as tuas maçãs, bruxa! - disse João das Vacas alçando a perna para passar o muro.
Teresa de Jesus armou-se da sachola e ameaça-o:
- Não te chegou, maldito? Desta vez racho-te a cabeça, maldito! Não te chegues demónio!
João das Vacas passou para o lado da macieira e avança devagar, a barriga bamboleando de um lado para o outro, um riso posto no carão vermelho.
Cremilde de Jesus ora e chora abraçada à cintura de sua mãe, escondida nas costas desta.
Teresa sente o fel a subir-lhe. Sente que hoje não vai apertar a boca e vai deixá-lo saír à vontade.
João das Vacas prossegue lento para Teresa de Jesus, de braços esticados para a apanhar.
Teresa de Jesus abre a boca.
- Que seques como uma ameixa ao sol, mirrado e encolhido, comido por dentro e vazio em pó!
João das Vacas estacou, sentiu uma dor no abdómen, depois no coração, logo seguida de outra nas partes pudendas. Cai de quatro e silva como um balão a esvaziar, os olhos esbugalhados, a boca aberta exibindo alguns dentes, a lingua roxa.
Cremilde de Jesus benze-se. O céu ficou sem sol de repente. O lenço negro de Teresa de Jesus caíu ao chão. João das Vacas põe-se nos joelhos, chupado, sugado da vida, encolhido pela metade, a carne seca e engelhada junto ao osso.
Teresa de Jesus apanha uma maçã tombada e bichosa. Agarra a larva branca e atira-a a João das Vacas.
Depois dá a mão à filha e descem devagar o caminho até casa.
.
(Maio/2006)

A bicicleta

.



.


A roda num movimento rápido dava a sensação de um fio negro a cortar o empedrado. Saltitava, serpenteava que o empeno era tamanho e só um hábil condutor destas manhas conseguía dominar o enviusado da direcção, sempre teimando guinar à esquerda. Talvez se devesse à ultima corrida, estacada quando aquele carro desvairado os atirou como uma parelha para um monte de terra na berma da estrada...ou quando dera boleia ao miúdo do Mata-Ratos, montado no guiador, vai que as pernas tão compridas se engataram nos raios! Raios o partam! Que o miudo até mancava e foram os dois ao chão...ou então, piorou a pedalada desde o último dono...que para dizer a verdade, esta tinha sido surripiada à porta de um café. Tão bonita, ali encostada e tão sózinha, tão abandonada...Quisera o destino que ele passasse naquele momento e se encantasse com prenda tão formosa e necessária, que os pés numa só bolha já vinham de Espanha, sem descanso que a Guarda fareja mais que o perdigueiro e o estomago da mingua trazía uma fome de dois dias.
Nunca mais se separaram. Até andava a pensar em comprar uma campainha mas as que vira eram reles e quando se interessava por alguma, o vendedor logo lhe inquiria se a bicicleta era sua, apontando de queixo a sua máquina maravilha. Aí desistía e pé esquerdo no pedal, dava balanço à direita para ganhar embalagem e montar-se como um corredor, rabo ao alto, dorso curvado, gingando todo para se apressar dali para fora.
A campainha era um capricho, pois quando pedalava todos se afastavam e se algum se distraía, ele berrava um "fuje" que se mostrava deveras eficaz. Depois do acidente com o filho do Mata-Ratos nem sequer precisava de abrir as goelas.
Andava ele nestas idas e vindas quando um dia os olhos se rasgaram para ao fundo da calçada de empedrado, encontrar a figura de um Cabo da Guarda. Apertou os travões com força e depois só o direito, dando aos pedais em sentido inverso, aliviou o punho até se estacar por completo.
Ele conhecía aquela cara, já a vira entre o arvoredo e luas cheias quando se passava para o outro lado. E sabía que o Cabo o havía mirado também, de costas, na fugida.
Tinha que se esconder...


Desmontou e amparou a bicicleta às pernas, despindo o casaco preto muito puído. De colete e mangas de camisa aparentava ser outro e isto da primeira vista tem muito que se lhe diga. Embrulhou a veste numa rodilha e descansou-a sobre o selim, achatando-a com uma palmada seca. Depois, ergueu a bicicleta e virou-a no rumo contrário, levando-a à mão, calmo, lento, como se pensativo da vida o tornasse invisivel aos olhos do Cabo. Andou vários metros, quando ouviu o silvo do apito da Guarda.
Todo o cuidado se foi e ligeiro embalou-se na máquina, olhando atrás, medindo a distância das suas rodas até às pernas alvoraçadas do Cabo que não parava de bufar no apito metálico. Quando achou que o alcance estava longe, rasgou a boca numa gargalhada amarela exibindo o vicio do cigarro enrolado enquanto lesto erguia o braço esquerdo e bem espetado no horizonte desfraldou um dedo médio seguido de uma pericia sem mãos ao guiador e culminado num "Toma lá, Cabo de Merda!"
Pedalou e pedalou até sentir que as pernas davam para voar, chegando ao extremo da povoação.
Mais além só o casinhoto da Maria Bastarda, velha crua e bruxa dizem, mas ele não é homem de medos, que esse já lhe apareceu por várias vezes e espantou-o com pouco mais de um fuje.
Agora tinha mais tempo para pensar: sacudiu o casaco, espalmado de servir de assento, vestiu-o e retomou a compostura, acabando por encostar a bicicleta à porta da casa da lenha da feiticeira.
Assim como assim, se encontrassem a sua pasteleira nunca poderíam dizer que era dele e de verdade, a pé também se escapa.
Entrou no alheio e a penumbra cegou-o. Sentía o cheiro de pinho de troncos ainda verdes...mas outro odor o incomodava, picava-lhe no nariz adunco... cheiro de ervas, cheiro de canfora, cheiro de bolor, cheiro de velho...não sabía o que era.
Apalpando achou um monte de palha e sentou-se escutando o silêncio. Parecía que lhe tinha soado o apito de novo, não, talvez passos, é o amolador afinal, que raio de coisa esta que se ouvem coisas quando as coisas não fazem barulho e quando não há barulho tudo se ouve, tudo se sente.
Durante uns segundos deixou de respirar pois que a certeza de outro lá fora era outro na sua cabeça. Mas não, alguém bulía com a sua bicicleta, tocava nos punhos, experimentava a firmeza do travão, chegava ao ponto de se sentar sobre aquele selim duro e marcado das molas ferrugentas, que isto agora era demais! Deu um pulo e decidido deitou a mão à argola que servía de fecho e logo que escancarasse a portada havería de jorrar o sangue.
Porém, ali ficou que a voz da Maria Bastarda, sem imagem que a traísse, lhe disse "queto" e ele mudo obedeceu, que era a "Guarda" sussurrou.
Foi assim que percebeu que o cheiro que sentía era cheiro a velha.


A luz entrou em forma de cone quando o Cabo da Guarda empurrou devagarinho e sem entrar, a porta da casa da lenha de Maria Bastarda.
Ouviu-se o som metálico da bicicleta a tombar no chão, a roda da frente girou tristemente, o Cabo chutou-a a exorcisar a falta do condutor e a bruxa assomou de cabelos em desalinho, pés nus e rugosos a despontarem sob as vestes em negro.
O Cabo deu um passo atrás e levou a mão à cinta a apalpar a segurança da pistola, a autoridade à distância do fecho do coldre, nariz empinando o medo da outra mas que esta não tem medos só os faz aos outros. O Cabo baixou agora o nariz que da velha nem o cheiro, só mofo, "roim", a morte por aqui. E o silêncio, que a bruxa só o mira, não lhe demanda pois que vai ele que é homem para tudo e até chegou a Cabo de Guarda inquiri-la sobre o ciclista malfeitor, a Espanha vai e volta e atrás dele há-de seguir até o apanhar que ele é a ordem e raça daquele mais nenhum vai haver.
Maria Bastarda é doida, ri-se, escancara a boca, mostra a linguínha afiada, ali já não há dentes, só pragas e condenações, bate com os pés no pó do chão, que isto não afasta o Cabo, dá-lhe este um safanão nos peitos que a atira às portadas e agora tudo aberto, entra.
O escuro enfeita a casa da lenha, Maria não gosta mas ri, que é doida. O Cabo arrasta as botas, oferece pontapés ao que não vê, pede luz, que se acenda a lamparina nesta toca de bicho pessonha, hoje não sai sem levar o fugitivo, o quase preso. A bruxa oferece-lhe a mecha escurecida do candeeiro que ele alumia mas mal alcança adiante, quem fechou a porta, pois deve ter sido o pé fendido. Ri Cabo, que agora estás doido, é o medo a vesti-lo, e sente-se apertado que Maria Bastarda se cravou a ele e ainda outras mãos, outros corpos a cingi-lo, a girar o mundo sobre ele.
Cá fora não há vivalma. Só uma bicicleta tombada. E o bater das aves em debandada com o estouro da pistola. Ele veio erguer a sua montada, devolver-lhe a dignidade, confirmar todas as peças ferrugentas no seu lugar, conferir os pedais. Deixou um rasto de sangue no selim, que rápido limpa, passa a mão às calças que num fato escuro nada se vê. Maria Bastarda ainda ri, que é mesmo doida mas ajudou-o.
Vem à porta. Parece uma despedida...ela estica o braço até ele e mostra-lhe uma campainha prateada, linda, capaz o suficiente para a sua bicicleta, "pega" arremessa-lhe ela. Ele agarra firme e como nunca soube agradecer por nada lhe ter sido alguma vez oferecido, só sabe encostar a campainha ao coração, talvez mirar nos olhos de Maria Bastarda, adivinhar-lhe a razão do gesto, sentir pena pelo riso de doida, sentir que nunca esquecerá...Apoiou o pé esquerdo no pedal, vai-se agora que este Cabo está no inferno mas outros hão-de chegar. "Queto", manda ela, "que meu filho espera-te", que filho este que vem do nada e ainda por cima o espera, a noite é que vem por aí e tem de se fazer ao caminho antes que lhe farejem o trilho.
Um homem pequeno de mãos grandes como pás, surgiu detrás de Maria Bastarda. Apoiado a um pau, tinha os mesmos olhos da mãe, os pés escuros e desnudos como os da mãe. Não ria como a mãe mas batía com o varapau a tempos certos arredondando covas no chão poirento.
Ele olhou-o como nas noites de passagem para o outro lado e ouviu-lhe dizer "lembras uma bicicleta que estava encostada à porta de um café ?"
.
(Maio/2007)